Por muitos anos, a indústria cinematográfica e a publicidade têm caminhado lado a lado. A prática de inserir produtos ou marcas em filmes remonta pelo menos aos anos 20 e apresenta exemplos em praticamente todas as décadas, desde às barras de chocolate Hershey's em Asas (1927) aos celulares da Nokia em Star Trek (2009). Como resultado, o público se acostumou a ver, por exemplo, personagens bebendo uma lata de refrigerante com o rótulo cuidadosamente posicionado de forma simétrica, voltado para fora – ou de outras formas hilárias.
O que tem ganhado força na indústria e chamado a atenção do público, no entanto, é que esses produtos deixaram de ser meros figurantes. Agora, eles estão assumindo o centro das narrativas, como os tênis Air Jordan em AIR – A História Por Trás do Logo (disponível no Prime Video), os salgadinhos Cheetos picantes em Flamin' Hot: O Sabor que Mudou a História (disponível pelo Star+) e o primeiro smartphone do mundo em Blackberry (sem previsão de estreia no Brasil) – curiosamente, todos lançados em 2023.
Mas em que momento exato as grandes estreias de Hollywood começaram a se assemelhar a um carrinho de compras abandonado de uma loja de departamento?
Segundo o crítico de cinema Filipe Furtado, a tendência é o resultado direto da aproximação de Hollywood com o Vale do Silício dos últimos anos, com empresas de tecnologia como Apple e Amazon cada vez mais investindo no setor audiovisual por meio de suas plataformas.
"Naturalmente, sob a liderança de profissionais vindos de meios não culturais, esses estúdios têm mais facilidade para apostar em filmes que abordam a história de executivos que revolucionaram o mercado. Quase como uma autoglorificação", explica ele, ressaltando o exemplo de AIR, estrelado por Ben Affleck. O longa retrata o início da parceria entre a Nike e Michael Jordan, e foca em como isso impulsionou o lançamento da linha de tênis que mudou para sempre a cara da empresa. O filme é uma produção do Prime Video, aliás.
O fator nostalgia
O longa de maior arrecadação em 2023 também se beneficia da relação comercial entre uma marca e o cinema – mesmo sem contar uma história que vasculha os bastidores da criação de um item emblemático: Super Mario Bros. O Filme, adaptação do popular personagem de videogame criado pela Nintendo, já acumulou mais de US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais.
O fenômeno, segundo Heitor Machado, gerente de mídias da Vitrine Filmes, faz parte da relação emocional do público com o encanador italiano, baseado na mais pura nostalgia. "Super Mario desperta interesse por trabalhar com um ícone da cultura pop que marcou uma época específica na vida das pessoas. Quando um símbolo assim é transposto para o cinema, as pessoas acabam desenvolvendo um vínculo emocional ainda mais forte", analisa.
Para ele, a nostalgia se tornou um sentimento comercializado, e por isso é cada vez mais frequente a forma com que estúdios apostam em fórmulas que mexem com as memórias afetivas do público. Essa teoria, aliás, pode ganhar ainda mais força nas próximas semanas, quando Barbie, a aguardada aventura cor-de-rosa dirigida por Greta Gerwig, chegar aos cinemas em 20 de julho.
Assim como Super Mario Bros. O Filme, a produção estrelada por Margot Robbie aproveita uma figura presente no imaginário popular para explorar uma narrativa original e, de quebra, mexer também com as memórias afetivas do público. "Meninos e meninas cresceram brincando com a boneca, assim como também jogavam Mario e calçaram um AIR Jordan. As pessoas acabam tendo um gancho emocional muito importante, e que, em última instância, acaba se convertendo em vendas de ingressos".
Segundo as projeções do The Hollywood Reporter, espera-se que Barbie arrecade entre US$ 80 a US$ 90 milhões em seu fim de semana de abertura – se não mais. "Uma performance muito boa, mesmo em um cenário pós-pandêmico", pontua Machado.
Falência criativa?
Pelo andar da carruagem, os filmes baseados em produtos ou marcas também não devem sair de estoque por ora: nos últimos meses, já foram anunciadas adaptações baseadas nos carrinhos da Hot Wheels, nas massas de modelar Play-Doh, nos jogos Uno e Detetive, nos biscoitos Pop-Tarts, entre outros. Mas essa repentina explosão de filmes baseados em produtos representa a completa falta de criatividade da indústria?
"Hollywood sempre tem se reinventado ao longo dos últimos 110 anos. Durante todo esse tempo, testemunhamos diversas crises, algumas de natureza técnica e outras históricas. No entanto, até agora, a falência não ocorreu", observa Márcio Rodrigo, doutor em Audiovisual e professor dos cursos de Cinema e Publicidade da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
"Quando a gente olha para a tendência de filmes que envolvem produtos e marcas globais, a gente só se certifica mais uma vez de que a indústria prefere explorar aquilo que faz sucesso ou aquilo que já foi testado", diz ele, utilizando como exemplo o lançamento de Indiana Jones e o Chamado do Destino e Top Gun: Maverick, assim como dos diversos outros derivados de Star Wars para o Disney+.
"Claro que a nostalgia e o interesse comercial estão presentes, mas também deveriam existir outros tipos de filmes. No entanto, Hollywood repete a fórmula porque está constantemente buscando monetização", afirma Rodrigo. "Ao longo dos anos, o público foi se mostrando fã das cinebiografias, que se tornaram grandes sucessos. É uma marca, mas, no caso, é um branding, um produto pessoal. Então por que os espectadores não gostariam dos filmes de produtos?", questiona.
E ele tem razão. Tanto as cinebiografias, como os novos filmes baseados em produtos, utilizam a narrativa para mostrar uma história de herói: de azarões a vencedores, ou de derrotados a vencedores. A única diferença entre os gêneros está na roupagem, ou melhor, na embalagem.