Casa Gucci tira muito de seu conflito, de seu drama, do simples fato de que a lendária marca de luxo significa uma coisa diferente para cada um dos membros da família retratada no filme. Para o sensível Paolo, diz Jared Leto, Gucci é um “sonho criativo”; para o retrógrado Rodolfo, admite Jeremy Irons, Gucci é sobre “tradição e conforto”. Mas e para Patrizia Reggiani? “Acredito que, para ela, Gucci é uma questão de sobrevivência”, diz Lady Gaga.
“Para Patrizia, ser Gucci era uma oportunidade de importar para o mundo de uma forma que ela nunca tinha importado em toda a sua vida”, continua a popstar, em conversa com o Omelete. “E não só para o mundo, mas também para o marido - ela sentia que podia ser valiosa como conselheira dele nos negócios da família. Os momentos em que ela mais brilha são aqueles em que pode mostrar sua força como uma esposa ‘para todos os momentos’, disposta a enfrentar tudo para proteger a família”.
Quando fala de Patrizia, Gaga parece constantemente acessar, dentro de si, uma compaixão que a socialite italiana raramente recebe do público ou da mídia. Esta é, afinal, uma mulher que contratou assassinos de aluguel para eliminar o ex-marido, Maurizio (Adam Driver), no momento em que sua pensão estava prestes a ser reduzida pela metade por causa do casamento dele com outra mulher.
É refrão comum entre atores, no entanto, que é impossível interpretar um personagem e julgá-lo ao mesmo tempo. Gaga parece ter mergulhado de cabeça nessa compreensão mais profunda de quem Patrizia é, como pessoa de carne e osso - condenada em 1998 pelo crime, ela foi solta da prisão em 2016 por bom comportamento. A atriz rejeita, inclusive, o rótulo de “interesseira” para a sua personagem.
“Ela tinha o sonho de uma vida melhor para si, e Gucci tinha como dar isso para ela. Então ela queria tudo, mas não acho que isso é ser interesseira, oportunista, ou obsessiva. Acho que ela acreditava que era o que ela estava destinada a fazer”, comenta. “Vindo da família que ela vinha, isso fazia sentido - é claro que ela queria ser mais do que a filha do dono de uma empresa de caminhões. Aliás, eu acredito, pelas pesquisas que fiz, que o negócio do pai dela era uma fachada para atividades da máfia”.
Pesquisa foi palavra-chave para Gaga em seu segundo grande papel no cinema, após receber uma indicação ao Oscar por Nasce Uma Estrela. “Eu passei muito tempo lendo sobre [Patrizia], vendo entrevistas dela e entrevistas de outras pessoas sobre ela, mas tentei não ler nem assistir a nada que tivesse uma opinião muito forte. Eu realmente queria criar o meu próprio ponto de vista sobre ela”, aponta.
“Patrizia é uma pessoa de verdade, mas também uma pessoa que mente muito”, admite Gaga. “Então quis poder decidir por mim mesma como ela se comportava quando estava mentindo, e quando estava falando a verdade. Quis entender quem era a mulher, Patrizia Reggiani, antes do casamento, antes do assassinato, e há pouco material sobre isso por aí… Então tive que construir a juventude dela por conta própria”.
3 animais e 15 perucas
Lady Gaga e Adam Driver em Casa Gucci (Reprodução)
Foi aí que o trabalho solitário de pesquisa se transformou no trabalho de equipe que é natural do cinema. “Nas minhas conversas com Janty [Yates, figurinista], que é incrível, me certifiquei que Patrizia nunca parecesse tão reluzente, tão polida, quanto os outros Gucci. Não queria que os figurinos falassem por mim”, diz Gaga.
Outro desafio, esse compartilhado também com o departamento de cabelo e maquiagem de Gucci, foi retratar a personagem em várias fases da vida - a trama, afinal, começa com Patrizia aos 22 anos, conhecendo Maurizio e se apaixonando, e termina com ela aos 49, sendo condenada pelo seu assassinato. “Antes de qualquer coisa, é ridículo pensar que eu consigo me passar por alguém de 22 ou 25 anos, então: obrigado, Ridley [Scott, diretor do filme], por acreditar em mim!”, brinca a atriz.
“O meu trailer, onde me preparava todos os dias, era como um laboratório científico. Tínhamos fotos de continuidade, em ordem cronológica, para saber como eu deveria parecer em cada cena. Usei 15 perucas diferentes para mostrar os cabelos que ela teve nesse período, e elas eram tratadas de forma específica em relação à era que deveriam representar - ou seja, mesmo os produtos químicos que passávamos nelas tinham que ser os produtos certos”, conta.
Uma particularidade de Hollywood que talvez os menos ligados nesse mundo não conheçam é que, por acesso a locações e outras razões logísticas, filmes são normalmente gravados fora da ordem cronológica do roteiro. “Às vezes, eu filmava uma cena de manhã em que Patrizia tinha 40 anos de idade, e na mesma tarde uma cena em que ela tinha 25. [...] Tinha sempre que estar pronta para ser a versão de Patrizia que era necessária em cada cena”, diz Gaga.
Para ajudar a distinguir essas “Patrizias”, a atriz teve uma ajuda, digamos… animalesca. “Eu me inspirei em três animais diferentes para as três fases do filme - no começo da vida dela, eu era um gato doméstico; no meio da história, era mais uma raposa, então estudei a forma como as raposas caçam, como elas são meio brincalhonas em seus movimentos; e depois virei uma pantera no final, um felino maior, que emprega uma técnica de sedução na caça”, enumera.
“Ela é uma artista destemida”
Lady Gaga e Salma Hayek em Casa Gucci (Reprodução)
Por todo o seu esforço, Gaga recebe uma chuva de elogios dos colegas de elenco, especialmente de Salma Hayek. A atriz mexicana divide várias cenas com a popstar ao interpretar Pina, uma vidente que se torna confidente de Patrizia e, mais tarde, facilita o acesso dela aos assassinos de aluguel que executam Maurizio. Amiga de longa data de Giannina Scott, mulher de Ridley Scott e produtora do filme, Salma comemora que o projeto tenha achado a estrela certa.
“Desde o começo, [Giannina] queria contar a história de uma mulher que talvez todo mundo veja apenas como uma interesseira, mas que na verdade amava muito esse homem”, explica. “É uma história sobre amor e os lugares para os quais você vai por causa do amor. E é uma personagem complicada. Gaga fez um trabalho tão maravilhoso, tão profundo”.
Hayek também lembra com carinho do clima leve no set, apesar do conteúdo sombrio de partes da trama. “Eu me diverti tanto filmando, porque Gaga te surpreende e te desafia em todos os takes. Amo a imaginação dela, e o quão ousada e corajosa ela é com suas escolhas todos os dias, em todas as falas do roteiro. Ela é uma artista destemida. Eu já trabalhei com atores brilhantes, mas há algo de especial nela”, define.
Lady Gaga em Casa Gucci (Reprodução)
Se o espectador entrar em sua sessão de Casa Gucci esperando uma resposta definitiva sobre as motivações de Patrizia para mandar matar o marido - os filhos dela dizem até hoje que seus atos foram resultado de um tumor no cérebro, que ela retirou pouco antes de cometer o crime -, pode sair decepcionado. Gaga cria uma mulher que parece real justamente porque escapa de definições que caberiam facilmente em uma manchete de tabloide, mas isso não significa que ela não tenha feito aquilo que quis fazer no começo de sua pesquisa: criar uma opinião própria sobre Patrizia.
“Acredito que ela foi uma mulher de verdade, que se apaixonou, e que amava não só Maurizio, mas também o que ele representava, e a forma como ele a empoderava dentro do negócio da família”, explica. “Quando isso foi tirado dela, ela reagiu de uma forma que a maioria das mulheres não reage - a maior parte das mulheres não manda matar o marido. Mas acredito que, dentro da opressão sistêmica que ela viveu, isso aconteceu porque ela simplesmente estava machucada demais”.