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Filmes

Crítica

A Crônica Francesa é Wes Anderson mais estetizado e mais político

Em seu décimo filme, cineasta faz balanço sobre arte e visão de mundo

18.11.2021, às 21H46.

O fato de A Crônica Francesa ter como protagonista um velho editor de revistas, que zela pela liberdade criativa de seus colaboradores mas não deixa de se preocupar com o dinheiro que eles torram às suas custas, diz muito sobre o filme. O editor é vivido por Bill Murray e descobrimos logo de partida que ele vai falecer, deixando ordens para que, na eventualidade de sua morte, a revista seja descontinuada. Há um clima de crepúsculo no ar, portanto, que inclusive fica latente na interpretação de Murray, sempre capaz de mil maneiras de expressar cansaço.

Os filmes de Wes Anderson sempre estão lidando com o lamento do fim de algo, porque partem de um pressuposto de que a inocência não pode ser preservada a não de ser modo artificial e autoconsciente (a obsessão pelos cenários tipo casa-de-boneca, enquadrados frontal e simetricamente, é a principal expressão dessa tentativa fotográfica de paralisar e conservar uma memória naïve das coisas). Não por acaso, os melhores trabalhos do cineasta, como O Fantástico Sr. Raposo (2009) e Moonrise Kingdom (2012), são aqueles que mais perto chegam de reparar a inocência no mundo de tal modo que o artifício se torne quase “natural”.

O que temos em A Crônica Francesa é que ambos se intensificam, tanto o artifício quanto o lamento. O filme está tratando do fim das coisas em duas camadas: a extinção de um certo artesanato e também o encerramento do século XX. Já compararam A Crônica Francesa com os filmes de Jacques Tati e essa aproximação parece óbvia: as comédias do mestre francês também partiam de uma defesa da inocência por meio da pantomima superestetizada, mas no caso de Tati isso se prestava a uma crítica da modernidade nos anos 1960, enquanto o contexto de Wes Anderson é o do fim do século das imagens, que se confunde com o declínio do império americano - e por extensão a crise da sua indústria do cinema.

É compreensível e parece quase inevitável que Anderson - agora alcançando a marca de dez longas-metragens em 25 anos de carreira - olhasse para sua própria obra pelo filtro desse evidente privilégio que é fazer um cinema cheio de idiossincrasias, disputado pelos maiores nomes da atuação de Hollywood, numa época em que a norma são as concessões artísticas impostas pelos conglomerados de tecnologia e mídia. Anderson não se faz de desentendido; fiel a seu projeto de cinema e principalmente zeloso da liberdade criativa que goza, ele leva em A Crônica Francesa - acompanhado de pelo menos 20 atores e atrizes de renome - esse projeto a um novo teste de estresse. Até mesmo a obsessão pelo tableau-vivant é atualizada, agora com cenas inteiras de ação congeladas no instante. 

Dá pra dizer que, para além das excentricidades, A Crônica Francesa é um filme político, até mais do que o discurso de pacifismo que o precedeu no filme de live-action anterior de Anderson, O Grande Hotel Budapeste (2014), porque é essencialmente político esse engajamento de conciliar a arte e o mundo - ou, neste caso, conciliar um certo fim da arte com um certo fim de mundo. Nesses termos, as três histórias curtas que compõem o filme (e oferecem olhares complementares de camadas e camadas de processo criativo) têm uma progressão clara: primeiro a expressão da arte como negócio, em seguida a arte como ato político, e por fim, na história do veneno do cozinheiro (e da página que quase se descartou), a arte como gesto de destruição de si.  

Ao retornar a temas, linguagens e lugares do eurocentrismo (passeando por referências que vão desde o Maio de 68 até as aventuras desenhadas por Hergé), Wes Anderson está prestando tributo à cultura popular que o inspirou, claro. Mas convém não subestimar essa homenagem, nem o olhar nostálgico e romântico sobre a imprensa; as composições de Alexandre Desplat sempre funcionam com Anderson para amplificar a inocência mas aqui elas embalam também a elegia, quase um cautionary tale do ocaso americano espelhado nesse eurocentrismo embalsamado. Se fosse um filme de flores - o personagem de Owen Wilson avisa logo no início que as detesta - elas certamente já estariam desbotando.

Nota do Crítico
Ótimo