Uma das qualidades essenciais de um bom contador de histórias é olhar para o caos da vida, da natureza humana, e tirar dele uma jornada que faça sentido. Não falo necessariamente de uma estrutura pré-determinada de três atos e arcos de personagem redondinhos, seguindo os mandamentos de um bom manual de roteiro, mas de uma narrativa que toque o espectador de alguma forma, que revele ideias e sentimentos ocultos, até então, por causa da pura desordem do mundo real. Em A Filha Perdida, a diretora e roteirista Maggie Gyllenhaal faz esse trabalho hercúleo com distinção espetacular.
Ainda mais hercúleo o trabalho, inclusive, porque o filme lançado pela Netflix é inspirado em um livro, assinado por Elena Ferrante, que não se importa muito com essa coisa de estrutura e “historinha”. Isso não significa que seja um livro ruim - pelo contrário, Ferrante sabe muito bem o que está fazendo quando nos enfeitiça com o seu texto que é uma teia de lembranças, esquecimentos e devaneios passados, brevemente interrompidos pela narrativa simples e evocativa que se desenrola no presente da trama. No papel, o A Filha Perdida de Ferrante é embriagante, mas Gyllenhaal acerta ao apostar que a versão para o cinema, até por estar em um meio tão visual, precisa de algo mais concreto.
Assim, o roteiro dela brinca cuidadosamente com o livro, mudando acontecimentos e revelações de lugar para desvelar para nós, os espectadores, uma linha narrativa mais clara. A nossa protagonista aqui é Leda (Olivia Colman), que tira férias em uma pequena ilha na Grécia após deixar as duas filhas, já crescidas, com o pai delas, de quem é divorciada. Por lá, ela topa com uma família nova-iorquina suspeita, e se vê fascinada pela jovem Nina (Dakota Johnson), perenemente exausta por causa da filha pequena e do marido quietamente ameaçador (Oliver Jackson-Cohen).
Conforme Leda se envolve lentamente na “guerra fria” dessa família, no fim das contas nem tão diferente de tantas outras que o espectador vai reconhecer da própria vida ou da ficção, acompanhamos também o passado da protagonista, durante a infância de suas próprias filhas. Gyllenhaal, assim como Ferrante, está interessada em adentrar os recônditos mais sombrios e inexplorados da maternidade como a conhecemos na sociedade contemporânea, abusando de uma fotografia (de Hélène Louvart) e de uma montagem (de Affonso Gonçalves) quase claustrofóbicas para frisar cada olhar de soslaio, gesto impensado e mudança de postura de suas atrizes.
Em sua estreia na direção, a atriz de filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas e Coração Louco se mostra uma cineasta irrepreensivelmente viva. O seu A Filha Perdida é um filme que parece respirar e ofegar ao lado das mulheres que escolhe acompanhar, e que se despedaça em mil fragmentos sempre que elas são empurradas para os seus limites. Ao invés de se comprometer com um formato muito rígido por todo o longa, Gyllenhaal prioriza a comunicação da história dessas mulheres, se certificando que permanecemos inteiramente ao lado delas a cada cena.
É quase o caminho inverso tomado por Rebecca Hall em Identidade, outra atriz que estreou na direção em 2021. Não há certo e errado nessa dicotomia, apenas o que serve melhor a cada história, e A Filha Perdida encontra nessa liberdade de formato o caminho para trazer à tela os intensos diálogos internos do livro de Ferrante. Com algumas imagens marcantes, e muitas pequenas e incisivas cutucadas semânticas, o filme traduz todo o sufoco intelectual, o cansaço físico, o senso inescapável de mortalidade, a transformação em objeto de serviço, que o conceito de maternidade contemporâneo carrega consigo.
As maiores aliadas de Gyllenhaal nessa missão são, é claro, as três atrizes no centro do filme - e elas também representam como caminhos distintos podem chegar ao mesmo lugar. A protagonista Olivia Colman opta brilhantemente pela naturalidade expressiva, incorporando sua inconstante Leda com dignidade e até algum humor, sem nunca cair no teatral ou no farsesco. Como sua versão mais jovem, Jessie Buckley escolhe uma abordagem bem mais sentimental, à flor da pele, trazendo à tona uma paixão e uma impulsividade que estão enterradas bem fundo na Leda de Colman. E, por fim, Dakota Johnson explode em maneirismos e inseguranças na tela, toda olhares manhosos e poses oblíquas, ao mesmo tempo musa, fonte de fascínio, e mulher de carne e osso.
Há um refrão comum que parece surgir na crítica de cinema sempre que um filme como A Filha Perdida é lançado, e especialmente quando jornalistas do gênero masculino falam deles. Como tática defensiva, talvez, esses críticos costumam dizer que as obras em questão encarnam algo de “fugidio”, ou “elusivo”, sobre a condição feminina, às vezes até transformando em elogio o fato de serem incapazes, por serem homens, de entenderem esses filmes por completo.
Parece-me uma grande bobagem, principalmente porque A Filha Perdida é uma aula de como usar o cinema como ferramenta de empatia. Não que ele se retorça e se “suavize” para ser entendido até por aqueles que não dividem com suas protagonistas a condição feminina - e nem deveria! -, mas ele não obscurece nada, não trata nada como mistério. Está tudo na tela, à plena luz, mais evidente impossível. Basta querer enxergar.