Da mesma forma que uma mentira repetida diversas vezes pode se tornar uma verdade, um absurdo deixa de ser um absurdo quando se incorpora à norma. A Grande Aposta (The Big Short, 2014), o filme sobre a falência imobiliária americana que deu ao diretor de comédias Adam McKay um lugar no Oscar, tenta entender pela lógica do absurdo como algo tão escandaloso pode ter ganho as proporções que permitiram a crise financeira global de 2007 e 2008.
O filme adapta o livro de Michael Lewis The Big Short: Inside the Doomsday Machine - publicado no Brasil como A Jogada do Século - e conta histórias cruzadas de investidores e especuladores financeiros que previram o estouro da bolha e resolveram apostar contra o que, desde sempre, era um dos investimentos mais seguros do mercado: os títulos de dívida imobiliária nos EUA. Conhecido por filmes estrelados por Will Ferrell como O Âncora e Ricky Bobby - A Toda Velocidade, parte do que McKay chama de "trilogia do homem americano medíocre", o diretor basicamente pega um material típico de drama cheio de lamentos (tantos sonhos desfeitos na crise que desalojou milhares de pessoas) e o transforma numa de suas comédias irônicas (que tipo de crueldade, disfarçada de estupidez, é capaz de desfazer tantos sonhos?).
Atrás de uma resposta, McKay investe na repetição. Seus protagonistas - vividos por Ryan Gosling, Steve Carell, Christian Bale, Brad Pitt e mais meia-dúzia de tipos incrédulos diante do que presenciam - personificam reações diferentes aos absurdos do mercado. Gosling faz o malandro, com suas metáforas, Carell vive o desesperado em negação, Pitt é meio niilista, meio conspirólatra, e Bale carrega no lado depressivo de ter sido o primeiro a diagnosticar uma doença que ele é incapaz de tratar. Antes de ser uma história com começo, meio e fim (porque afinal nos ciclos de destruição do mercado nunca há um fim de fato), A Grande Aposta é um exercício de de ação e reação, e de perplexidade.
Se o filme parece didático demais na forma como personagens expõem entre si (e celebridades expõem ao espectador, em constantes quebras da quarta parede que sublinham que A Grande Aposta de fato é uma comédia, para não deixar dúvidas) as premissas e os fatores da crise do subprime, é porque a repetição é essencial para entendermos como um absurso pode ser eventualmente aceito como norma. Por outro lado, ainda que McKay saiba muito bem o tipo de comédia que está realizando, A Grande Aposta é um filme meio limitado, porque o absurdo se encerra em si mesmo. Lamentamos a crise, porque ela sem dúvida é avassaladora e está fadada a se repetir, mas dificilmente levaremos conosco para além da sala de cinema esses personagens que tão bem exerceram sua função de se deixar transtornar por nós.
É um tratamento muito diferente, por exemplo, daquela de O Lobo de Wall Street, que também tem um narrador que nos interpreta a crise, que é capaz de enxergar o que outros não veem e de explicar para nós como ela funciona, como tirar proveito dela. Martin Scorsese, porém, como bom ilusionista (e em A Grande Aposta em nenhum momento somos levados a suspeitar dos nossos narradores), sabe que o ponto de vista do seu narrador não é confiável, e por fim torna isso o tema do seu filme. Já McKay, justamente por fazer da exposição e da repetição os elementos centrais da sua operação, está mais próximo não só do documentário mas principalmente de uma obra paradidática (se os livros na escola trabalhassem com ironia). O que nos resta é sentar diante de A Grande Aposta e, quem sabe, aprender alguma coisa.