Por destino ou alguma coincidência melancólica, A Grande Fuga marca o último filme de dois dos maiores intérpretes da história do cinema britânico: Michael Caine, que anunciou a aposentadoria pouco antes do lançamento da produção; e Glenda Jackson, que morreu em junho do ano passado, aos 87 anos. E, se a medida de um grande ator é o quão bom ele consegue ser diante de um filme que não exatamente o merece (algo que li em um obituário de Christopher Lee, e nunca mais esqueci), Caine e Jackson fecham com este filme suas trajetórias na tela grande provando que foram, mesmo, absolutos colossos da arte da atuação.
Inspirada em uma daquelas histórias reais em cinquenta tons de pieguice que são sucesso na imprensa sensacionalista mundial (mas, principalmente, na britânica), A Grande Fuga acompanha Bernie Jordan (Caine), um veterano da Segunda Guerra Mundial que “escapa” da casa de repouso onde vive com a esposa Rene (Jackson) para visitar as praias da Normandia no aniversário de 70 anos do Dia D, nome dado à batalha litorânea eternizada na narrativa do Ocidente como aquela que virou a maré da guerra a favor dos Aliados, levando à eventual queda da Alemanha nazista e ao fim do conflito. Se a premissa traz à mente o sucesso de filmes como Uma Vida, Philomena e até Do Jeito que Elas Querem, não é por acaso - parece que “velhinhos fazendo estripulias inspiracionais” se tornou quase um subgênero próprio nos últimos anos.
O roteiro de William Ivory (Burton e Taylor) para A Grande Fuga não faz muita coisa para fugir desse lugar-comum. Existe aqui, é verdade, alusões ao estresse pós-traumático dos veteranos, o conflito fundamental entre a vontade de viver uma vida “normal” ao voltar para casa e a impossibilidade de fugir dos fantasmas daqueles que ficaram para trás, da enormidade do dever que cumpriram com o seu país. O filme encontra algo de espinhoso em como Bernie e Rene lidam com a atenção e gratidão constante dos outros, até mesmo nos elementos mais condescendentes e assistencialistas dessa atenção, e como negociam sua privacidade com sua condição de figuras públicas - não necessariamente só pela atenção que ele recebe com sua “fuga” para a Normandia, mas com toda a publicização da Segunda Guerra como momento definidor da humanidade.
Se há uma função que o diretor Oliver Parker desempenha aqui, no entanto, é a de arrancar as garras desse subtexto. Com um currículo recente definido por comédias britânicas excêntricas, mas inofensivas, como O Retorno de Johnny English e Nadando Com Homens, o cineasta trabalha duro para limar as pontas mais “perigosas” de A Grande Fuga, contando muito com câmera na mão, rimas visuais confortáveis e fotografia de cores apagadas (assinada por Christopher Cross, de Xógum) para recortar desta história não um drama sobre veteranos e memória bélica, mas sim uma comédia da terceira idade que apele para o público jovem que quer se sentir bem com sua relação com os mais velhos. A covardia é óbvia: até na visita final de Bernie ao cemitério onde estão enterrados seus companheiros de batalha, Parker e o montador Paul Tothill (Orgulho & Preconceito) terminam a cena o mais rápido que podem, querendo fugir de emoções difíceis, grandes demais para caber na embalagem limitante que estão construindo.
Mas sabe quem não quer ir embora, nem aliviar para o nosso lado? Michael Caine e Glenda Jackson. Ela toma conta de fugir do confortável na primeira metade do filme, enquanto Caine ainda está esticando os músculos de galã para nos convencer de que Bernie é um protagonista que vale a pena acompanhar. Como vivida por Jackson, a fiel companheira Rene é uma mulher que não existe para nos agradar - as tiradas ácidas, entregues com um sorrisinho de lado irascível, seguem a mesma deixa da insistência rígida com a qual ela se movimenta pelo quarto do lar de repouso, contra todas as recomendações médicas. As rugas que recortam aqueles olhos azuis absurdos só os fazem mais afiados, mais capazes de enxergar para além de cada um de seus companheiros de cena, mais considerados em relação à história que a personagem carrega. Até o fim, Jackson estava jogando xadrez em 4-D enquanto nós, pobres mortais, continuamos presos em três dimensões.
É na segunda metade, quando Bernie completa sua peregrinação e começa a viagem de volta para casa, que Caine se eleva para envelopar a gaiatice e a doçura do personagem em camadas e mais camadas de desespero acumulado. Ele surge como um avatar do silêncio amargo que se tornou simbólico da masculinidade do século XX, da dignidade quieta que se tornou sinônima do ideal britânico na mesma época, de como todas essas pretensões desabam na intimidade e na privacidade do lar, e como é libertador que elas façam isso. E é engraçado, porque A Grande Fuga quer mais do que qualquer coisa fugir de tudo isso, de questionar o que fazemos com as pessoas que envelhecem e se tornam símbolos de um passado que lamentamos ou celebramos, sem nenhuma noção das nuances humanas que se desenrolaram nesse passado.
O filme quer, mais Caine e Jackson não querem deixar - e, porque são brilhantes, os dois conseguem. A Grande Fuga é imensamente melhor por isso, assim como o cinema era imensamente melhor com eles.