Kenneth Branagh em cena de A Noite das Bruxas (Reprodução)

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Crítica

A Noite das Bruxas retorce o subtexto de Agatha Christie ao ponto da perturbação

Ambientação habilidosa não salva o terceiro filme de Kenneth Branagh como Poirot

11.09.2023, às 06H00.

A curva ascendente de elegância e estilização dos filmes de Kenneth Branagh no papel de Hercule Poirot é um fenômeno estético notável. O que era verniz de glamour genérico em Assassinato no Expresso do Oriente, e se transformou em cinema cartão-postal com sensibilidade panorâmica em Morte no Nilo, se converte em puro delírio macabro neste terceiro longa, A Noite das Bruxas. A impressão que fica é que Branagh recebeu do roteirista Michael Green uma ideia abstrata (Poirot confronta o sobrenatural!) e repassou aos seus colaboradores uma demanda muito mais complexa: transformem Veneza em um antro aterrorizante de assombrações.

Nisso ajuda o retorno do diretor de fotografia Haris Zambarloukos, parceiro de longa data de Branagh que assinou Assassinato no Expresso do Oriente, mas ficara de fora da continuação. A Noite das Bruxas é claramente o trabalho de um duo de colaboradores afinadíssimos, costurando fluidamente as belas tomadas contemplativas da arquitetura e movimentação humana de Veneza, e mantendo o clima agourento em alta durante todo o filme - mas especialmente no primeiro ato, preocupado em estabelecer o mistério central da trama.

Nesta terceira aventura, reencontramos o detetive Hercule Poirot na cidade turística italiana, aposentado e vivendo sob a proteção de um guarda-costas, que trata de espantar curiosos e potenciais clientes. Somente a autora Ariadne Oliver (Tina Fey), uma velha amiga do investigador, é capaz de driblar esse isolamento, convidando Poirot para uma festa de Halloween sucedida por uma sessão espírita comandada pela médium Joyce Reynolds (Michelle Yeoh). A ideia, claro, é que Poirot use suas pequenas células cinzentas para desmascará-la - mas cada um dos presentes tem seus próprios planos para a noite.

Outro trabalho importante é o da montadora Lucy Donaldson, que tem experiência no terror com títulos como O Clube da Meia-Noite e Ma. Enquanto Branagh e Zambarloukos deixam suas abstrações artísticas alçarem voo em uma homenagem até antiquada aos chavões do gênero, Donaldson mantém o barco flutuando (perdoem o trocadilho) em uma dimensão de entretenimento. É ela quem faz os sustos do filme funcionarem, lançando mão de jogos de edição básicos para simplificar o que Branagh certamente concebeu com arabescos barrocos. E é essa simplicidade, fundamentalmente, que trata de nos lembrar que este é um filme de detetive, um whodunit, e que todo o resto é só distração.

O problema é que, assim despido de toda distração, A Noite das Bruxas não se sustenta como narrativa - de fato, quanto mais você pensa nele, mais ele desmorona em si mesmo. Depois de adaptar duas das histórias mais famosas de Agatha Christie para as telas, com apenas alterações cosméticas na trama, o roteirista Green encontrou em um dos livros da fase final da carreira da rainha do mistério uma plataforma para sua exploração sobrenatural - e, de fato, o seu interesse no A Noite das Bruxas de Christie é apenas passageiro, recortando nomes de personagens, um par de situações e algumas ambições temáticas para colá-los em contextos diferentes e construir o seu próprio mistério original.

Nada de errado até aí, não é mesmo? Acontece que o A Noite das Bruxas de Green retorce os elementos colados de Christie em favor de um texto não só absurdamente previsível como também, talvez até colateralmente a essa previsibilidade, bastante perturbador. Explico: corre por A Noite das Bruxas, o livro, uma ideia tipicamente Christie-ana de usar o bom humor para desmistificar as questões de saúde mental que se conectam, no imaginário coletivo, à criminalidade. Durante todo o volume, a rainha do mistério escreve personagens que supõem que o perturbador assassinato no centro de sua trama foi produto de um psicopata, um pervertido, uma anomalia social. No fim das contas, no entanto, o crime tem motivos (e um culpado) muito mais corriqueiros.

Em sua versão para o cinema, A Noite das Bruxas toma o caminho diametralmente oposto. Na trama engendrada por Green, Poirot e cia. passam o filme todo conjecturando motivos banais para os assassinatos ao redor dos quais o mistério revolve, só para enfim serem confrontados com uma realidade muito mais excepcional - no sentido literal mesmo, “de exceção”. Este, diga-se de passagem, é um arco bem mais usual nas histórias de mistério e de terror, que tem capitalizado em cima de perturbações psíquicas desde sua concepção.

Que Christie tenha escolhido subverter esse arco com tanta presença de espírito, quando já não tinha nada a provar como artista, é um testamento ao talento que a tornou o ícone que é. Segue-se a colocação lógica, portanto, que ao reverter esse processo e desenhar em cima das linhas de um clichê equivocado, o A Noite das Bruxas do cinema prova que, por todas as firulas estéticas que desenvolveu e ainda pode desenvolver, a franquia do Poirot de Branagh dificilmente vai sair do medíocre.

Nota do Crítico
Regular