Com o passar das décadas e a ampliação do culto popular à sua obra (ou pelo menos à obra que lhe atribuem nas redes sociais), Clarice Lispector se tornou uma espécie de “mulher elemental” da cultura brasileira. Não que suas narrativas difíceis e interiorizadas caibam confortavelmente nessa posição - e onde foi que Clarice coube confortavelmente, em toda a sua vida e seu legado? Há de se questionar, como se questiona, o quanto a experiência da filha de imigrantes ucranianos, branca, que passou a maior parte da vida em condições econômicas confortáveis, representa a feminilidade de um país perpassado por desigualdades e diversidades tão profundamente definidoras da nossa identidade.
Ainda assim, a ferocidade compassional que Clarice demonstrou na escrita deu um jeito de se infiltrar irrevogavelmente no imaginário popular, e a nova adaptação para os cinemas de A Paixão Segundo G.H., uma de suas obras mais cultuadas, sabe exatamente como se aproveitar disso. Primeiro, o diretor Luiz Fernando Carvalho (Lavoura Arcaica) trata de caracterizar sua musa Maria Fernanda Cândido de forma que evoca a autora, com os cabelos arrumados em um penteado cuidadosamente volumoso, a maquiagem e a fotografia (de Paulo Mancini) se desdobrando para pronunciar as maçãs do rosto e o arco das sobrancelhas. De forma equilibrada, mas firme, o diretor nos lembra quem é que estamos ouvindo quando sua estrela lê passagens inteiras do livro em off, ou olhando direto para a câmera.
Para além disso, no entanto, Carvalho coloca esse “dublê de Clarice” dentro de um universo cosmético que busca aproximação com o trabalho de um leque amplo de mulheres que perpassam o último século de cinema. A referência fácil para o público contemporâneo é Sofia Coppola, de quem A Paixão Segundo G.H. empresta a relação ambivalente com o luxo - fascinada e repelida ao mesmo tempo pela forma como a feminilidade de elite transforma mulheres em bibelôs, e seus arredores em casas de boneca, os filmes de Coppola articulam a prisão desses conceitos e a rebelião quieta que essas mulheres são capazes de encenar dentro dela, sem negar a sedução ordenada que eles provocam.
Carvalho faz o mesmo com sua G.H., sempre metida em vestidos delicados ou camisolas de seda, andando entediada por um apartamento impecavelmente limpo, mas também marcadamente decadente. Ao mesmo tempo, há algo de Agnès Varda, especialmente do seu clássico Cléo das 5 às 7 (1962), nos elementos barrocos do cenário, nas superfícies reflexivas nas quais G.H. se vê fraturada, na divagação observacional à qual ela se entrega para emular o fluxo de consciência do livro. E há algo de Jane Campion na forma como o filme trata o corpo da personagem como fato concreto, e não conceito ou imagem abstrata, tanto na sensualidade quanto no desespero ou no cotidiano, na sua colocação dentro dos cômodos da casa - as partes que não negam o todo.
Chantal Akerman e seu seminal Jeanne Dielman (1975) aparecem na forma como A Paixão Segundo G.H. trata o tédio e a feminilização degradantes do trabalho doméstico. A esperteza vulgar de Ida Lupino, atriz que virou diretora de thrillers e dramas sociais em uma época de Hollywood na qual esse caminho profissional não era só incomum, mas praticamente impossível, está em como Carvalho trata os elementos terrenos da história, do envolvimento de G.H. com um homem misterioso à sua eventual decisão de se entregar à vida noturna da cidade para esquecer tudo o que viu e sentiu em seu apartamento. Enfim, são paralelos que poderiam encher parágrafos e mais parágrafos, um trabalho de colagem cuidadoso, mas não óbvio.
A ideia, talvez, tenha sido conduzir o espectador a um sentimento de familiaridade onde a abstração por vezes grotesca da narrativa de Clarice ganhasse contexto. A Paixão Segundo G.H. não é exatamente uma história, mas um descarrego de impressões e dilemas (sociais e sentimentais) a partir de um incidente simples: após a demissão de sua empregada, a protagonista decide limpar sozinha o apartamento, mas se vê paralisada de horror e profundamente transformada quando encontra - e mata - uma barata no armário do quartinho onde a moça dormia. Daí a aura de “inadaptável” em torno do livro, e daí a escolha de Carvalho de transformá-lo, na verdade, em pouco mais do que um álbum audiovisual onde, ao invés de músicas, temos Maria Fernanda Cândido narrando Clarice dentro de um mundo que emula o “cinema feminino”.
Mas “cinema feminino”, é claro, não existe. O que existem são cinemas feitos por mulheres, tão caleidoscópicos em seus interesses e traduções visuais e narrativas, e tão unidos por pontos de convergência definidos pelas preocupações de seu gênero, quanto os cinemas feitos por homens. Em defesa de A Paixão Segundo G.H., ele entende que nunca seria capaz de abarcar ou representar essa variedade, assim como Clarice nunca seria capaz de representar o todo da feminilidade brasileira - só brincar com ela, oferecer um caminho, uma visão. Suas miopias, portanto, são calculadas, da coadjuvação muda da mulher negra ao melodrama ridículo da protagonista diante da barata, interpretado com uma nota de humor franca por Maria Fernanda Cândido, impecável no equilíbrio entre entrega física e distanciamento metalinguístico da personagem.
Se essa é a nossa Clarice, ela e o filme parecem dizer, ela continua tão inflexivelmente humana - e por isso mesmo limitada, e por isso mesmo fascinante, e por isso mesmo inescapável - quanto sempre foi.