Alba Baptista em A Semente do Mal (Reprodução)

Filmes

Crítica

A Semente do Mal brilha quando assume o seu gosto pela provocação

É até fácil perdoar os momentos mais protocolares do filme de Gabriel Abrantes

13.06.2024, às 08H06.

Quando Ed (Carloto Cotta), o protagonista de A Semente do Mal, começa a descrever para a namorada Riley (Brigette Lundy-Paine) o seu primeiro encontro com a própria mãe, Amélia (Anabela Moreira), ele admite à amada que ficou ligeiramente assustado com a aparência da mulher. “Ela exagerou um pouco na plástica”, diz o moço, sem jeito. “Mas onde?”, pergunta Riley. “Em tudo, responde Ed, após uma hesitação precisa, de milésimos de segundos, com a qual Cotta tira do texto de Gabriel Abrantes (seu parceiro criativo desde a elogiada comédia Diamantino, de 2018) o humor por vezes grotesco que define os momentos mais inventivos, mais subversivos e - não por acaso - mais vitais do filme.

Existe algo de sátira de classes em A Semente do Mal, que conta a história do jovem americano que descobre - através de um teste de DNA - que foi sequestrado quando bebê da mansão de uma família aristocrática portuguesa. No pique de Corra! (mas sem o subtexto racial), Ed e Riley vão visitar os novos parentes ricos e excêntricos no interior de Portugal, onde logo começam a perceber que, como reza a sabedoria popular, “algo de errado não está certo” por ali. Abrantes se diverte muito brincando com a obsessão por juventude, beleza e pureza genealógica dos ricos, com o pendor da aristocracia antiga ao incesto, com o absurdo obsceno dos luxos e privilégios que a definem.

Nessa toada, a mansão de Amélia tem uma “sala de meditação” comicamente desprovida de móveis (mas devidamente decorada com um baú destrancado cheio de segredos de família); as paredes estão cheias de retratos da dona da casa na juventude, quando Amélia é interpretada pela belíssima estrela portuguesa Alba Baptista (Warrior Nun), um deles pintado pelo celebrado artista espanhol Francisco de Goya; e a dupla de advogadas da velha não faz nenhuma objeção quando ela se refere a Ed como “seu novo namorado”, muito embora ele seja idêntico ao irmão, Manuel (também interpretado por Cotta). A Semente do Mal não está interessado em incomodar ou comunicar ou sugerir um desajuste de tom - ele está interessado em provocar, em zombar, em brincar de fazer terror.

Quando faz isso, o filme brilha como um entretenimento vulgar que existe do lado certo da história. Acontece que, lá pelo miolo de seus até econômicos 91 minutos, Abrantes se vê obrigado a passar por movimentos protocolares do filme de horror, com a protagonista americana metida em passeios intermináveis por corredores escuros e florestas inconspícuas, onde pode ligar para uma amiga que lhe dá conselhos sensatos que ela claramente não vai ouvir. A forma mais óbvia que uma obra de terror pode mostrar sua fragilidade narrativa é ficar se debatendo com a questão asinina do “por que eles não simplesmente vão embora?”, uma preocupação prática tão boba e desinteressante que só se levanta como legítima quando as circunstâncias da trama são particularmente entediantes.

Por um tempo, A Semente do Mal é esse tipo de filme, em que o espectador se vê torcendo para sua heroína sair logo dessa enrascada - afinal, isso significaria que não precisaríamos mais acompanhá-la em sua odisseia de horror pouquíssimo inspirada pelo interior de Portugal. Mas é um trecho curto, até, do qual é muito fácil se esquecer quando Abrantes começa e termina o seu filme com o espírito de um mestre de cerimônias de circo decadente, que tira prazer óbvio em nos confrontar com o grotesco e o perverso da condição humana como moldada por um sistema predicado no isolamento das classes. Em outras palavras, ele é exatamente o que todo grande artista de horror deveria ser.

Que esta não seja a obra-prima que uma sensibilidade como a dele poderia muito bem produzir é lamentável, sem dúvida. Mas, mesmo falho como está, A Semente do Mal ainda é uma ótima sessão de cinema - e elas estão ficando cada vez mais raras ultimamente.

Nota do Crítico
Bom