Em 13 de outubro de 1972, um avião fretado, transportando jogadores uruguaios de rúgbi para uma partida no Chile, sofreu um acidente sobre o Vale de Las Lágrimas, na Cordilheira dos Andes. No primeiro impacto significativo, a aeronave foi partida ao meio, resultando na morte de 16 dos 45 passageiros – um número que aumentou nos dias seguintes. Ao longo dos anos, os relatos dos sobreviventes do caso, que ficou conhecido como Milagre dos Andes, foram explorados na literatura e no cinema, e estão de volta no impressionante e visceral A Sociedade da Neve, de J.A. Bayona (diretor de O Impossível e Jurassic World: Reino Ameaçado), que está disponível na Netflix e foi escolhido pela Espanha para representar o país no Oscar de 2024.
Com uma sensação de "sem tempo a perder", o filme evita prolongar muito a introdução dos personagens ou o pano de fundo dos acontecimentos. Com pouco mais de 10 minutos, A Sociedade da Neve já transporta o espectador para a sequência aterrorizante do acidente. O trabalho do diretor de fotografia Pedro Luque (Besouro Azul), aliado à montagem da dupla Jaume Marti (Sete Minutos Depois da Meia-Noite) e Andrés Gil (Canção de Ninar), contribui para criar esse momento intenso que retrata a queda da aeronave, onde corpos são esmagados, membros se quebram, e o desespero se reflete nas expressões daqueles que, com sorte – ou azar – testemunharam tudo.
Quem conhece a história do acidente por outros filmes sabe que a experiência assustadora do acidente é apenas o início de uma jornada perturbadora por sobrevivência em meio ao ambiente hostil da cordilheira. Mesmo com esse tom mórbido, A Sociedade da Neve consegue subverter as expectativas sobre o que se espera de um filme-desastre com escolhas narrativas inspiradas.
A primeira delas é explorar bem a dinâmica do grupo como um todo, focando nas relações interpessoais, sempre pautada pela cumplicidade – até porque, segundo os relatos do livro do jornalista Pablo Vierci, La Sociedad de la Nieve, que inspirou a produção, o grupo não brigou uma única vez ao longo dos mais de 70 dias em que esteve perdido. Além disso, o filme, diferentemente de outras produções do gênero, escolhe como narrador onipresente um dos jovens que não sobreviveram à catástrofe, o centrado Numa (Enzo Vogrincic).
Já a segunda decisão consiste em evitar explorar o aspecto gráfico esperado de um filme que trata, essencialmente, de canibalismo. Em vez de focar no gore, A Sociedade da Neve segue por um caminho mais inteligente – porém não menos visceral: o estado psicológico daqueles que são forçados a tomar essa drástica decisão em nome da sobrevivência. O dilema moral dos jovens torna-se ainda mais profundo graças a uma parcela de culpa católica, mas nada é escancarado na tela. O filme evita esse tipo de sensacionalismo, assim como aderir a um humor mórbido ou um misticismo como aquele de muitas vezes dita o tom dos episódios de Yellowjackets, série do Paramount+ com praticamente a mesma temática.
Ainda que pareça oportunismo reviver esse relato – ou pelo menos pareça uma involução na carreira que Bayona esteja retornando a esse tipo de filme-desastre após ter feito O Impossível – A Sociedade da Neve se justifica na comparação com o mexploitation Os Sobreviventes dos Andes (1976), de René Cardona, e Vivos (1993), dirigido por Frank Marshall, com Ethan Hawke e Josh Hamilton. Ao contrário dessas outras abordagens, o longa espanhol consegue reconstruir o drama sem cair na glamorização hollywoodiana e ainda evita a crueza – e o baixo orçamento – da versão latina.
Embora não apresente fatos completamente inovadores e complementares aos relatos dos sobreviventes, Bayona consegue criar um filme de desastre único, com atmosfera e requinte técnico semelhantes a concorrentes recentes do Oscar, como Nada de Novo no Front, da Alemanha, e que ainda termina com uma mensagem surpreendente e edificante de esperança.