Por boa parte de Abigail, absolutamente todas as aparições da vampira mirim que batiza o filme são acompanhadas pelo tema principal de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky - provavelmente a melodia mais famosa da história do balé. O paralelo já era óbvio no papel, quando o roteiro de Stephen Shields (The Hole in the Ground) e Guy Busick (Pânico VI) coloca a menina, logo na primeira cena do filme, para dançar o movimento em que o Cisne Branco revela o seu “outro lado” para o público. Ela repete os passos na sequência em que finalmente revela suas presas de vampiro para o grupo de criminosos que a sequestrou, caso você não tenha entendido a mensagem.
Mas o ponto é que, nas mãos dos diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, a brincadeira com O Lago dos Cisnes é empurrada até o precipício do inoportuno. Em defesa dos dois, eles sabem exatamente quando parar a fim de evitar que o truque cheire demais ao material barato do qual é feito… o que, de certa forma, define muito do charme e das limitações de Abigail como um todo. Afinal, se tem algo que os dois filmes de Bettinelli-Olpin e Gillett na franquia Pânico provaram é que eles têm bom olho para identificar e energia de sobra para reavivar os clichês que fazem um gênero funcionar. Inovação não é a palavra chave aqui, mas sim renovação - e só por aí já dá para entender por que Hollywood abraçou o trabalho dos dois com tanto entusiasmo.
Abigail é também, em parte, uma brincadeira espertinha (mas, em última instância, inofensiva) com personagens arquetípicos do thriller criminal, tentando o tempo todo subverter a expectativa do espectador viciado pelo gênero. Por exemplo: Joey (Melissa Barrera) é a enfermeira, designada para cuidar da menina sequestrada, e portanto deve assumir o papel metafórico de “mãezona” do grupo, sua voz da consciência, seu coração de ouro por baixo da brutalidade criminosa, certo? Bom, mais ou menos. De veterana traumatizada a viciada em recuperação, passando por mãe ausente e eventual final girl ensanguentada, a personagem passa por revelações e transformações que desestabilizam o entendimento que o espectador julga ter dela, ao mesmo tempo que não a deslocam do centro nervoso e emocional do longa.
Amarrada a essa montanha-russa de personagem, Barrera mostra-se de novo uma intérprete capaz de manobras dramáticas musculares, com uma concepção tão sólida de sua Joey que nem os absurdos melodramáticos crescentes do terceiro ato são o bastante para que ela perca a personagem de vista. Ao seu redor, Dan Stevens e Kevin Durand se deleitam na oportunidade dourada de interpretar personagens (o policial corrupto ameaçador e o capanga de coração de ouro, respectivamente) que oscilam de forma alucinada entre se encaixar e se deslocar marcadamente dos tipos que eles costumam encarnar nos cinemas. É esse o elenco que ancora os truques de Abigail em algum tipo de humanidade, que preenche em parte o vácuo que existe no cerne do longa.
Porque, no fim das contas, o coração de Bettinelli-Olpin e Gillett não está aqui. Seja ao colocar sua vampira-mirim-bailarina para dançar O Lago dos Cisnes, escalar Giancarlo Esposito como o chefe vira-casaca dos protagonistas ou encenar a morte de cada um de seus vampiros com explosões absurdas de sangue e vísceras, o que eles fazem em Abigail é amontoar ideias que parecem divertidas justamente porque já funcionaram antes, aumentar o volume da afetação teatral até o 11, e esperar que uma história de verdade, com personagens de verdade, apareça pelo caminho. E ela até aparece, mas é por muito pouco. Desta vez, eles se safam; da próxima, só pagando para ver.