De todos os "jovens terríveis" da Nouvelle Vague, Jean-Luc Godard foi quem ficou mais permanentemente com a imagem de cínico, insolente. Que seus filmes sejam vistos como exercícios formais e de discurso, expressões dessa insolência, talvez impeça as pessoas de reconhecer o que há de romântico, confessional e até mesmo ingênuo em Adeus à Linguagem (Adieu au Langage, 2014).
O primeiro longa em 3D do diretor de Filme Socialismo e O Desprezo parte, como tem sido ostensivo nos filmes de Godard, do esgotamento da imagem. Não se trata mais de desconfiar daquilo que nossos olhos veem, como o cinema "de arte" europeu discutiu nos anos 1960, mas sim de anular nosso olhar, questionar a facilidade com que a tecnologia de hoje nos permite consumir registros de imagem, e a partir daí, da disrupção, reencontrar um sentido visual para as coisas.
"As imagens hoje são o assassinato do presente", diz o Godard narrador de Adeus à Linguagem, e se o cineasta parece dedicado a frustrar nossa percepção com seu experimento com o 3D - sobrepondo camadas conflitantes e esgarçando a imagem da mesma forma que levou ao limite o digital de baixa resolução em Filme Socialismo - é porque não haveria forma mais contundente de nos demonstrar nossa própria fadiga do que o enfrentamento. Muita gente hoje diagnostica que perdemos a capacidade de nos comover com o absurdo, o que talvez tenha a ver com esse cansaço de tanto enxergar o mundo.
Se Godard é incapaz de sucumbir a essa fadiga, fruto da nossa passividade, é porque o francês de 84 anos, adolescente no imediato Pós-Guerra, enxerga conflitos em tudo o que vê. "A guerra só acaba para os que morrem nela", diz mais tarde a narração. A disposição para o enfrentamento move as escolhas de Godard (não só a disrupção da imagem, mas também a tradução seletiva de alguns diálogos, é fragmentação feita para instigar o espectador), não há dúvida, mas isso não impede Adeus à Linguagem de ser também um filme de amor.
Pois aos poucos, passado o choque, Godard começa a propor uma visão de mundo romântica - naquilo que o romantismo tem de fantasia, de intuição - para rearranjar a linguagem e devolver sentido à imagem. Ela está inscrita no texto ("precisamos pintar o que não vemos", diz Godard citanto Monet), no fiapo de dramaturgia (a encenação cheia de elipses de uma suposta perseguição, cuja ação cabe a nós completar) e nos registros mais casuais (o lirismo e a regressão meio ingênuos das cenas com o cachorro de Godard, Roxy,e do plano-detalhe da tinta diluída em água, matéria-prima de tudo).
Se o romantismo foi o movimento que deu importância ao "eu", no sentido em que valoriza uma visão de mundo regida pela subjetividade, então Adeus à Linguagem nunca é mais romântico do que na cena em que um dos casais em tensa relação de aproximação diz que "as duas maiores invenções são o zero e o infinito", diz ela, "a morte e o sexo", diz ele. Que Godard trate essas coisas absolutas e anteriores ao indivíduo como uma "invenção" do homem diz muito não só sobre o que o cineasta entende por linguagem - darmos forma e sentido ao mundo pela nossa presença - mas também sobre seu romantismo.