Cena de Aftersun (Reprodução)

Filmes

Crítica

Aftersun faz crônica de um amor essencial, mas essencialmente fragmentado

Paul Mescal transforma em carne e osso o mistério intrínseco dos nossos pais

30.11.2022, às 11H30.

O desafio posto diante de Paul Mescal em Aftersun não é pequeno: na pele de Calum, o pai da pré-adolescente Sophie (Frankie Corio), ele precisa fazer com que o espectador se sinta conectado a um homem que ele não realmente conhece - ou, na mais generosa das definições, que ele conhece apenas em pedacinhos, pelos olhos da filha, que Calum mantém proposital e dolorosamente afastada de certos aspectos de sua vida. O que o ator exercita aqui, portanto, é a arte de expressar sem dizer, de se fazer entender sem o artifício dramatúrgico da exposição.

A nossa sorte é que Mescal é brilhante em seu trabalho. O segredo é a naturalidade do seu carisma, que vai na contramão dos astros de cinema mega-ensaiados de Hollywood, e que o torna compulsivamente “assistível”. A forma como Mescal se move pelas cenas, as marcas do estresse parental no corpo, as direções para as quais seus olhares quietamente angustiados fogem quando um ponto sensível é pressionado sem querer pela filha… nada disso escapa ao espectador, tanto porque a diretora Charlotte Wells é dedicada a registrar essas nuances quanto porque Mescal torna impossível perdê-las. De olhos grudados nele, nós o entendemos mesmo sem conhecê-lo.

Essa é a crúcis de Aftersun como um todo, a bem dizer. Ao recortar e colar as lembranças de Sophie (na fase adulta, Celia Rowlson-Hall) sobre as férias que passou com o pai quando tinha 11 anos de idade, o filme aos poucos vai se materializando, diante do espectador, como um poema elegíaco à inescrutabilidade essencial dos nossos pais. Semi-protegidos por definição de suas partes mais feias, mas incapazes de manter a visão super-heróica que tínhamos deles na infância, aos poucos os convertemos, na mente senão no coração, em estranhos - ainda que sejam estranhos com os quais temos muita intimidade.

Essa contradição dilacerante não diminui o amor da filha pelo pai, ou do pai pela filha. Aftersun cintila, na fotografia dourada de Gregory Oke e na montagem impressionista de Blair McClendon, com a mais pura afeição e empatia. As partes que vemos da angústia de Calum, sejam elas testemunhadas ou extrapoladas por Sophie, só fazem nos enternecer mais ao personagem, prantear mais a ausência mal-definida dele que pauta a vida adulta da filha, ao menos nos breves flashes que vemos dela. Calum, o homem, nos surge trágico apenas pelas partes de si que poda.

Daí o uso esperto de enquadramentos que fragmentam o corpo do personagem, escondem-no nas sombras, nos espelhos, nas telas de TV ou nos limites da área registrada pela câmera. Como acontece, por exemplo, com as protagonistas de Sweetie (1989), clássico de Jane Campion, essa técnica não serve para despersonalizar Calum, mas para que entendamos a sua necessidade de se colocar no mundo em pedacinhos, eternamente incompleto, até (talvez especialmente) diante de quem mais ama. Sem estragar as revelações de Aftersun, vale dizer que esta é uma condição com a qual muitas pessoas na plateia vão se identificar intrinsecamente.

Daí também a forma como Wells estrutura o seu filme, trocando o bom e velho esquema de três atos por uma espécie de crescente febril de conflitos sufocados e segredos espiados pela fresta da porta. O trabalho do texto e da edição aqui, na verdade, é amortecer o choque entre a intimidade quase sufocante dos trechos gravados como se fossem filmes caseiros e as passagens ambientadas em cenários de delírio, que se permitem um passeio fantasioso entre passado e presente. Tecer, enfim, a ponte entre uma tentativa emocional de simular a realidade e o afastamento teatral que permite desvelar verdades sobre ela. 

Se há algo para se dizer contra Aftersun, é que nem sempre esse trabalho árduo de conexão ocorre sem interferências. Às vezes, o filme de Wells parece complicar demais o que não precisa ser tão difícil, incluir camadas de estetização que, ao invés de auxiliar na comunicação com o espectador, atrapalham. No entanto, mesmo que definido pela própria diretora como autobiográfico, Aftersun escapa do egocentrismo e tem como ambição o universal. É um filme generoso e, acima de tudo, profundamente verdadeiro sobre o que há de insondável e particular na experiência humana daqueles cujas vidas se entrelaçam com as nossas.

Nota do Crítico
Ótimo