Nas aventuras de Calvin & Haroldo - tiras que são referenciadas pelo menos duas vezes no filme Amigos Imaginários - a ideia é que a amizade do menino com seu tigre de pelúcia permita realizar o pleno potencial da infância. Na selvageria de Haroldo, Calvin se vê protegido de qualquer ameaça, o que o liberta para sondar e descobrir o mundo sem medo.
O longa escrito e dirigido por John Krasinski parte da mesma premissa: os amigos imaginários que concebemos na infância para nos fazer companhia servem, por extensão, para nos proteger de tudo. Krasinski surge ocasionalmente em cena no papel de um viúvo que passa uns dias no hospital para realizar uma cirurgia de risco; a protagonista é a sua filha de 12 anos, Bea (Cailey Fleming), cujo amadurecimento desponta precocemente na medida em que a menina tem que enfrentar, mais uma vez, a revelação da mortalidade dos pais.
Na condição de uma adolescente “que não é mais criança”, Bea já deixou para trás há muito tempo os amigos imaginários que talvez tenha concebido na infância. Ou pelo menos é o que a menina acreditava, porque certo dia ela descobre no edifício da sua tia um apartamento onde se juntam amigos imaginários que ficaram “órfãos”. Ao lado do personagem de Ryan Reynolds, chamado Cal, Bea precisa então arrumar novas crianças para essas criaturas.
É nessa combinação de Toy Story 3 com O Sexto Sentido que Amigos Imaginários se desenrola, pegando emprestadas as referências mais consagradas hoje desse resgate de pureza: emulando os longas da Pixar, com uma estética próxima de Tim Burton. A familiaridade se instala rápido; Krasinski faz questão de recorrer a Michael Giacchino para compor a trilha sonora, fazendo de forma imediata essa ponte com a Pixar, que se nota também na temática da regressão e na escala da ação (trata-se de um “filme de missão” com um escopo um pouco menor que aquele de Monstros S.A.). De Burton, especificamente de Peixe Grande, vem a rememoração de uma América cinquentista envolta num véu de inocência, gótico-romântico.
Todas essas referências trabalham, em comum, com graus variados de nostalgia. (É possível defender que o cinema de Tim Burton muda de chave e se massifica na medida em que ele passa a encarar a nostalgia mais passivamente.) Não é de surpreender, portanto, que John Krasinski vá beber na fonte hollywoodiana principal de nostalgia para terminar de enformar sua visão de mundo: o cinema de Steven Spielberg, mais especificamente o olhar do diretor de fotografia polonês Janusz Kaminski, que a partir de A Lista de Schindler (1993) trabalhou em 20 filmes de Spielberg.
Amigos Imaginários está atrás dos feixes de luz de Kaminski. Na aventura de Cal e Bea, tudo parece uma grande viagem onírica ao passado quando as luzes no horizonte de Nova York atravessam janelas e enchem salas empoeiradas com essa cor âmbar da nostalgia. Há um propósito imediato na escolha de trabalhar com Kaminski, que é tornar mais adocicada a realidade dura da cidade de Amigos Imaginários - onde para fora do hospital tudo parece iluminado indiretamente por postes, abajures e luminárias angulosas. Diferenciar a realidade “imaginada” da “verdadeira”, afinal, é parte da ideia toda.
O que ocorre na prática, porém, é que esse véu nostálgico engessa uma redescoberta do mundo. Para um filme que cita Calvin e Haroldo com pretensa propriedade, Amigos Imaginários comete o deslize de confundir a mensagem das tiras: ter um amigo imaginário para se defender da vida não significa se alienar da realidade, mas o exato oposto, significa apropriar-se da realidade sem qualquer pudor. É comum que as metrópoles concebidas romanticamente no cinema se esvaziem de sua gente - transitar na Paris da vida real é muito diferente da Paris das margens do Sena convidativas ao passeio de solitude nas telas - mas esta Nova York de Krasinski se desenha particularmente deserta. Há uma única cena em que uma multidão se junta, não por acaso no momento em que Bea fecha os olhos e imagina o calçadão de Coney Island com pessoas vestidas como nos anos 1940 e 1950 - marinheiros da Segunda Guerra inclusos.
Uma menina de 12 anos no século XXI com saudades do que não viveu é a expressão que temos, então, desse desejo de John Krasinski de preservar uma certa América no inconsciente coletivo e, de quebra, inscrever seu próprio nome na História. Já faz 15 anos que ele estreou como diretor então faz sentido que tenha essa ambição, o que inclui resgatar no longa um imaginário que o próprio Krasinski só testemunhou nostalgicamente, desde a coreografia de nadadoras (homenagem aos “aquamusicais” estrelados por Esther Williams nos anos 1940) à citação de Meu Amigo Harvey, o filme com James Stewart lançado 30 anos antes de Krasinski nascer. Pelo menos Ryan Reynolds veste bem no justo colete vintage.
Amigos Imaginários não é um ABC do Amor (2005), sua Nova York idealizada surge em 2024 menos como um chamado para viver o presente e mais como uma tentativa de embalsamar essa magnanimidade que está se minando com o declínio cultural do americanismo como um todo. Talvez o filme até se torne mais interessante por conta disso, mas ainda assim as escolhas de Krasinski - de Giacchino a Kaminski - continuam sendo escolhas blindadas pelo prestígio, seguras demais para uma história que se pretendia um convite ao aventuresco e não apenas à nostalgia.