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Amor à Francesa | Crítica

Amor à francesa

28.09.2001, às 00H00.
Atualizada em 10.11.2016, ÀS 14H03

Rica em contestação, em polêmica e em revolução técnica, a Nouvelle Vague ("Nova Onda"), movimento francês que renovou o cinema no final dos anos 50, também sabia discorrer elegantemente sobre os temas existenciais de sua sociedade. Desde as aflições juvenis em "Os Incompreendidos" ("Les Quatre Cents Coups", de François Truffaut, 1959) até a falta extrema de fé e o suicídio em "Trinta Anos esta Noite" ("Le Feu Follet", de Louis Malle, 1963), assuntos espinhosos e tabus intocáveis ganhavam na tela formatos de obra-prima. Visto por alguns como o ideal principal da existência, por outros como uma penitência, o amor também serviu de inspiração para os diretores da Nouvelle Vague, defensores das liberdades criativas e do chamado "cinema de autor".

Em cartaz em São Paulo, "Os Amantes" ("Les Amants", de 1958) exibe a visão do sempre polêmico Malle (1932-1995) sobre o assunto. Já "O Homem que Amava as Mulheres" ("LHomme qui Aimait les Femmes", de 1977) ilustra o tratamento fino e filosófico que o apaixonado Truffaut (1932-1984) concede ao tema. Surge como uma oportunidade preciosa observar os pontos de vista contrastantes que os dois artífices do movimento, habitualmente revisitados na Paulicéia com mostras especiais e reestréias, alimentam sobre a temática do amor.

Insinuações de nudez

Malle divide com Truffaut a abordagem poética, mas "Os Amantes", seu segundo longa, depois da estréia retumbante de "Ascensor para o Cadafalso" ("Ascenseur pour LÉchafaud", de 1958), não compartilha do romantismo de seu compatriota. Talvez a semelhança mais evidente entre os dois seja a veneração das musas da época - um elemento constante na antologia dos filmes franceses - como Catherine Deneuve, Fanny Ardant e, principalmente, Jeanne Moreau. Exatamente esta última vive em "Os Amantes" o seu primeiro papel de destaque, a adúltera Jeanne Tournier.

Casada com Henri (Alain Cuny), o administrador de um jornal, dedicado integralmente ao trabalho, Jeanne procura escapar de sua rotina no interior da França. Em viagem a Paris, ela conhece, entre outros homens, Raoul (José-Luis Villalonga) e se torna o seu amante. De volta à cidade de origem, se envolve com Bernard (Jean-Marc Bory) e trai Henri e Raoul. O clima de devassidão se instala com insinuações de nudez e cenas inimagináveis para a época, como um obsceno sexo oral. Durante muitos anos, "Os Amantes" foi censurado em países como França, Itália, Estados Unidos e Brasil. Em plena década de 50, Malle começa a construir o arquétipo que o acompanhará durante toda a carreira: o crítico despreocupado com mitos sociais, despojado e polemista.

A sua herança, todavia, se sustenta na libertação do indivíduo, acima de qualquer outra definição. E "Os Amantes" fulgura até hoje como um grande clássico, o retrato do despertar da sexualidade.

Lado filosófico

Na época de seu lançamento, "O Homem que Amava as Mulheres" já gozava da liberação sexual e de um certo afrouxamento das regras sociais. Assim, as suas cenas de nudez não provocaram tanto constrangimento. Coube a Truffaut dissecar outro aspecto das relações amorosas, o lado filosófico, diferente do sentimento puramente instintivo e rebelde espelhado na obra de Malle. O problema de seu protagonista, o soberbo Bertrand Morane (Charles Denner) é a dependência total das mulheres e, ao mesmo tempo, o total descompromisso diante delas. O homem não ama uma mulher, mas as mulheres em sua essência. Em uma cena, diagnosticado com uma doença venérea, acaba interrogado pelo médico: precisa relembrar o nome da moça com quem saíra na última semana. Bertrand se confunde com a resposta, entre a meia-dúzia de companheiras que lhe vêem à mente.

O filme se sustenta em situações engraçadíssimas e em diálogos edificantes e inspirados. Uma das mulheres diz que Bertrand não busca exatamente o amor, uma vez que se apóia na idéia do amor. Outra esclarece o mistério: "É difícil recusar coisas a você. Porque você pede como se a sua vida dependesse disso". Desde o complexo de Édipo até a tara por pernas roliças, das relações sexuais em locais públicos até a paixão pela voz de uma telefonista, Bertrand vive todo tipo de experiência. Mas no fim se descobre incompleto por não conseguir amar de verdade. E como sua vida depende disso, morre na tentativa.

Se Louis Malle se esmera em exibir o lado prático da libertação das pessoas, François Truffaut exercita a sua filosofia ao examinar a natureza masculina. Cada um, a seu modo, com suas poesias particulares, falam do amor.