Cena de Anora (Reprodução)

Filmes

Crítica

Anora lamenta o mundo onde tudo é transacional - mas sem perder a ternura

Sean Baker continua prosperando no caos catártico que resta aos oprimidos

27.05.2024, às 08H46.

Embora seus filmes tenham sempre um certo açúcar que os aproximou muito rapidamente do público jovem que curte cinema independente em busca de uma historinha de conforto para chamar de sua, Sean Baker não é um artista esperançoso. Desde pelo menos o revelador Tangerina (2015) que o cineasta estadunidense se acerca das histórias de grupos marginalizados e oprimidos através do humor e do movimento - seus filmes são vivos, não só na espontaneidade da contratação de atores amadores, mas também de forma bastante calculada dentro da linguagem e do ritmo que Baker impõe a eles na arquitetura de cada cena.

No fim das contas, no entanto, o humor está ali mesmo para cumprir a sua função mais básica de escape. Baker entende que, no beco sem saída em que a classe trabalhadora é colocada, o caos e a risada são as únicas catarses, a única maneira de criar uma ilusão de que ainda estamos saindo por cima dessa disputa. E Anora, que estreou em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024,repete essa fórmula com garra e inteligência o bastante para criar a mesma lealdade entre personagens e espectador que fez dos filmes anteriores de Baker um sucesso entre o público que - teoricamente - menos tem a ver com ele.

Dessa vez, a personagem-título (Mikey Madison, de Pânico 5) é uma dançarina exótica e prostituta que acredita ter achado o seu tíquete para uma vida de conto de fadas quando conhece Ivan (Mark Eydelshteyn), o filho de um oligarca russo que vai de cliente a namorado, e de namorado a marido, em um espaço de poucas semanas. Quando a poderosa família do rapaz fica sabendo do matrimônio, no entanto, eles e seus capangas passam a fazer de tudo para separar o casal apaixonado. E tome fugas desesperadas por Nova York, com a nossa Anora presa na furiosa e constante incerteza da validade e segurança de seu laço com o marido - a relação começou como transação, afinal, e nada garante que não continue sendo uma.

Esta é uma história, portanto, sobre como a “produtização” das relações humanas criou não só um mundo em que a dignidade da pessoa é um pensamento secundário, como também um mundo onde a insegurança é inconstante. E em dobro para a mulher, cujo corpo é o commodity mais abusado do capitalismo; em dobro para o pobre, que depende da liquidez dessas transações humanas para sobreviver em um sistema que lhe nega um ganha-pão mais sólido, mais estável. Pior ainda, quem está do outro lado dessa troca não poderia estar ligando menos para o fato de que há outra pessoa ali, de-sensitizados à exploração do próximo porque ela é a rotina de quem está no topo da pirâmide social.

Anora talvez seja mais eloquente nas elaborações desses discursos do que Projeto Flórida, por exemplo. E Baker, que também assina o roteiro e a montagem, mostra consciência invejável da potência de sua mensagem ao segurar a pisada no freio emocional da trama para os últimos minutos, talvez até segundos, do filme. Mas há também nesse cineasta comedido que parece ter surgido nos últimos anos algo de dissimulação que não existia antes - nos diálogos gritados, situações esdrúxulas e picuinhas mesquinhas de Anora, Baker deixa-se escorregar para o cinema do caos calculado, que é muito menos excitante que o cinema visceral que ele fazia antes.

Mas existe a clareza de visão e coração aqui, ainda, e existe a ternura. Enquanto não perder essas coisas, o cineasta dificilmente vai deixar de ser uma das vozes mais interessantes do cinema contemporâneo dos EUA.

Nota do Crítico
Ótimo