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Filmes

Crítica

Armadilha oferece um Shyamalan realista - na medida em que suas fábulas permitem

Diretor volta ao suspense claustrofóbico invertendo perspectivas de reféns e maníaco

08.08.2024, às 17H26.

Armadilha é um dos poucos filmes de M. Night Shyamalan que não lidam claramente com questões de crença e transcendência. É parecido com A Visita (2015) e Tempo (2021) nesse sentido; é antes de tudo um exercício de gênero que lhe dobra as convenções, um suspense de gato e rato e ao mesmo tempo uma comédia screwball dada a escalada absurda de suas viradas. Shyamalan havia sondado bem as aproximações de humor e suspense também em Fragmentado (2016), mas no personagem de James McAvoy naquele filme (e nas suas reféns) há algo de essencial a respeito do que Shyamalan acredita ser a função transformadora da crença.  

O personagem de Josh Hartnett em Armadilha, um pai de família chamado Cooper, não precisa acreditar em nada: ele simplesmente é. No caso, Cooper, embora tenha um nome normalmente dado a cães e americanos pacatos, é um maníaco prolífico, de ficha tão corrida que o FBI se mobiliza a cercar o show de uma estrela teen para tentar prendê-lo. Armadilha transcorre ao longo desse dia, em que Shyamalan sujeita Cooper e a si mesmo a encontrar sempre a próxima saída de emergência. Se o cineasta um dia almejou ser Alfred Hitchcock, como muito já se comparou, então Armadilha renova a aproximação, dado que segue uma lógica hitchcockiana de constrição.

É também como se Fragmentado se invertesse e, ao contrário de seguir as vítimas de um sequestro, nós assumíssemos apenas o ponto de vista do vilão. Shyamalan toma a decisão, aparentemente displicente mas justificada, de tornar as coadjuvantes (como a filha de Cooper e a própria cantora) peças meio decorativas, para que seu poder de agência na trama não nos distraia da perspectiva do protagonista. Isso se apresenta como um problema para o filme a partir do momento em que as coadjuvantes precisam ocupar papel central, mas de qualquer forma Armadilha nunca perde de vista o que lhe interessa de fato, que é materializar na ação a agitação mental do vilão. 

Porque embora Cooper seja um maníaco consumado isso não necessariamente o torna um maníaco excelente. Os close-ups frontais de Shyamalan mais uma vez cumprem a função fundamental de transformar as bordas do enquadramento em expressões de um certo desarranjo psicológico e do mundo - que então cabe ao protagonista, centralizado no quadro, reordenar com sua força de vontade e sua capacidade de fabulação. Como Armadilha passa longe de ser uma fantasia, e como foi concebido como um estudo de espaços, acaba sendo limitado esse potencial que Cooper tem de moldar seus entornos. Nesse ponto trata-se de um Shyamalan realista, por assim dizer, ainda que o filme se meta com plena satisfação nos seguidos problemas que inventa pra si.       

Essa satisfação se expressa a todo momento. Cada close-up em Hartnett diante da encruzilhada abre uma variedade de caminhos possíveis não apenas para o personagem mas para a trama como um todo, vias que então a câmera escolhe com movimentos de panorâmica sobre o mesmo eixo, como se emulasse mesmo o olhar subjetivo de Cooper em busca de uma saída. Essas panorâmicas são outro traço autoral de Shyamalan e aqui, por conta do dinamismo da trama e da quantidade de informação na tela (convém anotar que a ação já começa num estádio cheio), elas parecem mais atraentes do que as panorâmicas de um filme minimalista como Fim dos Tempos (2008).  

De qualquer forma, o jogo de gato e rato tem um interesse limitado, e ele se dilui quando o filme deixa o estádio. Mais interessante é acompanhar como Cooper reage a partir do momento em que sua condição, bem conhecida do espectador, é revelada também para os demais personagens. Armadilha se torna uma bagunça do meio para o fim? É legítimo enxergar assim; é igualmente legítimo, porém, entender que esse desarranjo expressa a turbulência de um personagem finalmente desmascarado, em cuja perspectiva o filme nos fez confiar desde o primeiro minuto. Não deixa de ser um movimento audacioso de Shyamalan transformar Armadilha num filme diferente na reta final, ao trocar o diálogo interno de Cooper, seu entendimento de mundo, por um confronto que de fato testa se a ordem vivida na cabeça de Cooper se verifica na realidade.    

Eis então que Shyamalan de certa forma repete o McAvoy de Fragmentado ao presentear Cooper não apenas com os privilégios do protagonismo mas também com uma jornada mitificadora. O personagem coloca para fora suas verdades, e pode dizer que viveu para consumá-las. É o máximo que Armadilha permite ao vilão em matéria de fé. Cooper não se transforma num monstro literalmente, porque sua manifestação de monstruosidade já é autocontida, mas o final do filme é inconfundível na sugestão de um (re)nascimento. É curioso e irônico que o cinema americano tenha pego ranço de histórias de origem na era dos super-heróis, enquanto o que Shyamalan faz, na prática, na sua fixação pelo fabular e pela transcendência, seja contar repetidamente histórias de origem como ninguém.

Nota do Crítico
Ótimo