Há uma dor pouco característica no olhar de Kamala Khan (Iman Vellani) quando ela aprende, a contragosto, sua primeira grande lição ao lado de Carol Danvers (Brie Larson) e Monica Rambeau (Teyonah Parris) em As Marvels. Conforme observa as edificações singulares do refúgio Skrull ruírem, as formações rochosas que o adornam cederem e uma multidão desesperada ficar para trás, a adolescente entende algo que o experiente Scott Lang (Paul Rudd) ainda não foi capaz de compreender: heroísmo pressupõe sacrifícios e, às vezes, não só você não consegue salvar todo mundo, como você é obrigado a conviver com o peso das suas escolhas.
Trata-se de um choque de realidade duro, mas importante para a adorável Ms. Marvel, um claro passo rumo ao seu amadurecimento dentro do MCU. No entanto, essa cena é simbólica para além do arco desta ou de qualquer uma das três protagonistas. É aqui que a Casa das Ideias dá o primeiro lampejo de que As Marvels marca seu reencontro com o que fez do seu universo compartilhado um empreendimento tão bem-sucedido lá atrás. Sem sacrificar a construção do hype para o que vem pela frente, o filme encontra seu propósito de existir em si mesmo, explorando as falhas, as inseguranças e, portanto, a humanidade das suas personagens.
Este sempre foi o trunfo da Marvel, e chega a ser surpreendente que tenha demorado tanto para que alguém como a diretora Nia DaCosta lembrasse a todos do óbvio. Até porque, diante da inconstância deste princípio de Saga do Multiverso, o resgate do que é clássico é menos esperto, e mais necessário. Afinal, a decadência do estúdio ultrapassa a saturação. Trata-se de uma verdadeira crise de identidade, já que, sem resquício de estilo ou muita particularidade que justifique a ideia de um universo coeso, sobra mesmo o “esquema de pirâmide” dos lançamentos. Mas é justamente aí que a cineasta se sobressai: porque As Marvels é tudo menos genérico. Na verdade, o longa resgata o espírito das longínquas fase 1 e 2 com uma graça própria, que poucas produções do MCU tiveram a ousadia de ter.
Valendo-se de uma dinâmica à la Sexta-Feira Muito Louca, o longa entrelaça as vidas das três heroínas e as coloca para enfrentar mais uma líder autoritária dos Krees — desta vez, atrás de recursos naturais para dar sobrevida à decadente Hala. A vilã Dar-Benn (Zawe Ashton) não é particularmente cativante, mas, eficiente no seu papel narrativo, cria um bom pretexto para impulsionar Carol, Monica e Kamala por uma viagem colorida pela galáxia. Porque, por mais que o subtexto da jornada seja sério, com respaldos interessantes no mundo real — estamos diante de debates sobre imperialismo e preservação ambiental —, o filme faz desse passeio uma aventura carismática, tomando tempo para apresentar e diferenciar cada planeta.
Arquitetura, vestimentas e costumes são específicos e originais a cada lugar, e a breguice, um traço relevante até para as histórias de herói mais cabeçudas, é abraçada sem muito embaraço. Nesse contexto, inclusive, o CGI se torna um artifício bem-vindo, sobretudo por permitir que o espectador mergulhe neste universo de fato, colocando-o para ver na luz, e não decifrar na escuridão, os choques culturais das heroínas. Já o humor que vem como consequência desse estranhamento não subtrai a força e o impacto da história, e sim adiciona camadas de interesse.
Isso é, em essência, uma boa construção de universo. A partir dela fica fácil perdoar as incongruências que As Marvels cria no MCU — o pesar, a esposa e a crise criada por Nick Fury (Samuel L. Jackson) em Invasão Secreta, por exemplo, são completamente ignoradas nesta produção que, em teoria, seria uma continuação da série. Na verdade, por mais que esteja conectada a outros três títulos — Capitã Marvel, WandaVision e Ms. Marvel —, o longa dá conta de se sustentar nas próprias pernas, dando o contexto básico para que se entenda a origem dos dilemas do seu trio de heroínas. Trata-se de uma aventura com começo, meio e fim, sem grandes arestas, e que entrega o que prometeu com pouco mais de uma hora e meia de duração. Entende o quão fora da curva é isso para a Marvel dos últimos anos?
Quer dizer, de novo, As Marvels não reinventa a roda propriamente — e a referência à primeira convocação dos Vingadores no final do filme evidencia isso. Mas, mesmo com suas imperfeições, como transições um pouco truncadas entre cenas, cria condições para que o fã volte a se envolver e a se importar com as personagens. Com sequências de ação bem coreografadas, que fazem valer cada golpe, Nia DaCosta acolhe as heroínas e deixa transbordar sua essência para além do discurso idealista do herói. Até porque, convenhamos, a nobreza é apenas uma faceta para que estas personagens sejam adoradas. Na realidade, está na teimosia e nos arrependimentos de Carol, na resistência de Monica ao luto e na empolgação ingênua de Kamala — ou seria ingenuidade empolgante que Iman Vellani entrega tão bem? — seu verdadeiro charme. Uma volta ao essencial pode ser, neste que é o longa mais curto do MCU, uma forma de recomeço.