O evento de pisar na Lua em 1969 foi um grande salto para a humanidade, mas deixou o homem sem rumo. Descobrir que as viagens espaciais envolviam mais uma experiência laboratorial, como coletar poeira numa superfície estéril, do que conquistar novas civilizações em planetas selvagens alterou o eixo da ficção científica mais popular no período; de 2001 a Duna, colocou-se o homem e sua crise existencial em posição de protagonismo. Essa crise - motivada por uma intrincada combinação de fatores culturais, naturais e políticos, e não só pela viagem da Apollo 11 - é o que define a geração dos baby boomers, concebidos com a prosperidade econômica do Pós-Guerra, como o cineasta Wes Anderson, que nasceu naquele ano de 1969.
Asteroid City se ambienta no início da geração boomer, os anos 1950, quando a ameaça comunista se fez metáfora nos filmes B americanos com histórias de invasões alienígenas. A paranoia militar fornece o pretexto para a trama escrita por Anderson e Roman Coppola: um grupo de personagens visita uma cidadezinha perdida num deserto dos EUA para ver uma cratera de meteoro e observar fenômenos da luz no céu, mas acaba quarentenado pelo exército depois de fazer um contato imediato de terceiro grau com um extraterrestre.
Essa trama se passa ao longo de uma semana; é a informação que recebemos de um apresentador (Bryan Cranston) num programa de making-of, porque Asteroid City se organiza como uma peça de teatro dentro do filme (a trama do alien, no caso, é escrita pelo dramaturgo vivido por Edward Norton). Não é a primeira vez que Wes Anderson recorre a essa estrutura de boneca russa, inclusive a metalinguagem, o teatro e a volta de Jason Schwartzman como protagonista traçam um parentesco imediato de Asteroid City com Três É Demais (1998), um quarto de século depois.
A história dentro da história não é inédita, enfim, mas essa estrutura em compartimentos e camadas e o discurso geral sobre o caráter libertador da arte, que Anderson já inflamara há dois anos em A Crônica Francesa (2021), atinge ponto crítico aqui; até o general interpretado por Jeffrey Wright faz seu breve discurso dividido em capítulos. O palavrório autoconsciente e o diletantismo neurótico podem afastar o público que esperaria de Anderson uma narrativa mais direta ou meramente lúdica; de qualquer forma, já ficou claro que o cineasta escolheu enfrentar o fim do mundo e a nossa crise estética generalizada com uma mania acima das demais: a sistematização radical da narrativa.
Asteroid City é um filme sobre a pandemia? Não deixa de ser, mesmo porque a premissa da quarentena promove essa leitura instantaneamente. Mas, como diz um personagem forçado a resumir a peça, Asteroid City “é sobre o infinito e não sei o que mais”. Reduzir a questão a um único “propósito” seria ignorar o fato de que Anderson está justamente numa jornada maximalista onde tudo se torna não apenas sistematizado ao extremo mas também transparente e abrangente nas suas escolhas visuais e textuais. Poucas vezes ele se permitira até hoje uma coisa literal, por exemplo, como colocar nas bocas dos seus personagens uma convocação em defesa da fabulação: “Não dá pra acordar se a gente não adormecer!”, grita o pessoal do teatro - categoria desprestigiada que no mais está já acostumada a tratar seu ofício como boia de salvação da humanidade.
Se Wes Anderson procura ser maximalista na sua abrangência, cobrindo o luto, a bomba atômica e o cosmo, então tratemos Asteroid City não como uma fábula sobre a pandemia e sim como algo maior, como um compilado em volume único sobre todo o imaginário americano do século passado. O ponto de inflexão desse imaginário é justamente a separação promovida pela experiência da corrida armamentista, que encerrou a chamada Grande Geração (os americanos que sobreviveram à Crise de 1929 e lutaram nas duas guerras mundiais) e fez os baby boomers viverem não apenas à sombra colossal dos seus pais combatentes mas também sob a paranoia da Guerra Fria e do holocausto nuclear.
Anderson engloba em Asteroid City algumas pedras fundamentais de como a arte deu forma ao imaginário: o cinema (as montanhas do Monument Valley pintadinhas em Technicolor no fundo do cenário são o espaço por excelência do faroeste e do mito americano), o teatro (Blonde tomou Adrien Brody emprestado para interpretar o dramaturgo Arthur Miller mas Anderson agora o reivindica), a publicidade (basta um garotinho sardento sentado numa mesa de piquenique para engatilhar o déjà vu: os tons pastéis dos filmes de Anderson nascem da memória da publicidade dos anos 1950 e graças a Asteroid City isso agora também se tornou mais aparente) e a literatura (boomers como Don DeLillo e Jonathan Franzen também se especializaram em buscar o chamado Grande Romance Americano em histórias de paranoia, crise existencial e conflito de geração).
A maioria dos filmes tombaria sob o peso dessas pretensões caso as abraçasse. Asteroid City evita essa armadilha, antes de mais nada, porque a autoconsciência já enrijece seus personagens logo de partida: eles não precisam ser todos boêmios, diletantes ou intelectuais para ter a sensibilidade de identificar as dores do mundo e entender o peso das ambições. Nos filmes de Anderson, a carga do passado e das expectativas dos pais já assombra as realizações dos filhos desde sempre; o cineasta não poderia ser mais boomer nesse sentido. Seus personagens são fisicamente rijos, eles se movem com dificuldade, e qualquer gesto mais brusco se torna um elemento rico de comédia física, dado que inesperado.
Wes Anderson não se conforma, porém, e está em busca de se conciliar com as memórias que o precedem e de tomá-las para si, porque afinal de contas teria sido muito mais fácil permanecer numa infância tomando milk shakes com a família nos diners e drive-ins das propagandas do que preocupando-se com a bomba. A alternativa de crescer millennial, dono do mundo e pleno de potencialidades, Anderson e Schwartzman já haviam esgotado em Três é Demais. Resta esse intervalo incômodo onde Anderson se encontra, hoje aos 54 anos. Se o seu cinema é definido essencialmente por uma ideia de deslocamento geracional - crianças se comportando como adultos para evitar se transformar em adultos que perderam a graça da infância - então Asteroid City, pela fábula que decidiu contar, numa encruzilhada da História americana, talvez seja o filme onde isso pode acontecer com mais ressonância, ou com mais propriedade, por assim dizer.
De resto, sempre podemos contar com Anderson para se superar, um cineasta capaz de dar conta sozinho de um Barbie e um Oppenheimer: reforçando a crença no seu cinema de casa de bonecas, reminiscente de uma certa inocência, onde o deserto dos testes nucleares é o lar do Papa-Léguas e o cogumelo atômico parece um efeito cartunesco de explosivo Acme; e ao mesmo tempo fazendo disso uma leitura política da maior sobriedade sobre um país, sua gente e suas escolhas.