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Crítica

Até o Último Homem | Crítica

Mel Gibson faz filme de guerra edificante sem minimizar o impacto da violência

25.01.2017, às 15H51.
Atualizada em 14.02.2017, ÀS 17H09

Com as seis indicações da Academia ao seu Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016), incluindo a de melhor filme, Mel Gibson volta ao Oscar duas décadas depois de levá-lo por Coração Valente, e não deixa de ser uma coincidência que essa redenção dos seus pecados (as manchetes de alcoolismo, intolerância, acusações de violência doméstica) diante de seus pares aconteça por um filme envelopado em temas de castigo e purgação.

O longa é baseado na história real de Desmond Doss (Andrew Garfield), jovem adventista que, convencido a se alistar durante a Segunda Guerra Mundial, travou uma batalha pessoal com o Exército dos EUA porque queria servir como médico e se recusava a pegar em armas. Boa parte do filme se passa como uma história de treinamento, antes do clímax na Batalha de Okinawa, estrutura emprestada de clássicos do gênero como Nascido para Matar, mas do começo ao fim o que testemunhamos está mais para estudo de personagem do que painel sobre a guerra, na longa via-crúcis de Doss em busca de paz de espírito.

Do ponto de vista do discurso, Gibson faz aqui uma defesa de suas crenças que é muito similar à de A Paixão de Cristo: o isolamento do indivíduo moralmente correto, o sacrifício pessoal como uma opção mas acima de tudo como uma condição incontornável para a redenção, a obsessão com o registro graficamente ostensivo da capacidade que o homem tem de produzir a morte. Se no épico bíblico de Gibson essa combinação gerava um relato fundamentalista que beirava o sadismo, porém, em Até o Último Homem o diretor parece encontrar o veículo ideal para transformar seus dogmas numa narrativa edificante e de fato libertadora.

Gibson nunca foi de meias-palavras, ainda mais quando filma a violência - como seus filmes mais radicais, como Apocalypto, podem muito bem atestar. Aqui ele enche as cenas de guerra (filmadas com pouco CGI e espantoso despudor nos planos de explosão, tiros, membros mutilados, corpos incendiados) de um imaginário digno do Velho Testamento, da fumaça diluviana que cobre o cume Hacksaw à onda bíblica de fogo que consome galerias subterrâneas. O diferencial de Até o Último Homem é que Gibson nunca abandona o registro desafetado e documental de sua História Real, ao mesmo tempo em que recorre a essas licenças poéticas raivosas de obliteração.

A Andrew Garfield, que concorre ao Oscar por sua competência mas especialmente por sua entrega física e emocional ao papel, resta a figura cristã que, daí sim, Mel Gibson filma com assumida veneração: onipresente é a luz que banha Doss desde o começo, pelo vitral da igrejinha que a mãe frequentava, até a elevação aos céus (com direito a braços abertos num quase sinal de cruz) ao final do calvário. Esteticamente, Até o Último Homem é um filme de iluminação plena, como se não estivéssemos sob as sombras e as incertezas do século 21 e sim num melodrama de Technicolor dos anos 1950. Ainda assim, Gibson nunca perde de vista que toda escolha tem seu custo, por mais justa que seja, nem que o mal muitas vezes pode soar a nós como uma coisa violentamente natural.

Nota do Crítico
Ótimo