Filmes

Crítica

Avatar 2 pulsa nos choques entre o velho e o novo

James Cameron volta para reabilitar a crença de que o movimento é sexy

15.12.2022, às 12H30.
Atualizada em 11.01.2023, ÀS 08H37

Nos 13 anos que James Cameron levou para fazer Avatar: O Caminho da Água, Hollywood se viu tomada de vez pelo pensamento financista que transforma bens culturais em números numa planilha. Lutar contra esse movimento hoje parece um esforço quixotesco, e talvez por isso blockbusters emblemáticos do período, como Jogador Número 1 (2018) e as sequências de Star Wars, tenham trocado a luta tradicional do Bem contra o Mal pelo “caminho do meio”, uma concessão que metaforicamente permita ainda sonhar com a arte dentro de um sistema projetado para anulá-la.

Cameron em si não tem nada de quixotesco, uma vez que sua batalha é lutada de um ponto de vista privilegiado e muito concreto: o topo da montanha de dinheiro que ele fez para a 20th Century Fox entre Titanic (1997) e o primeiro Avatar (2009). Hoje a Fox não existe mais nesses moldes, fagocitada pela Disney, mas James Cameron permanece o mesmo, e de todas as apostas que se pode fazer a respeito do seu cinema a mais segura é arriscar que o cineasta nunca trocará o maniqueísmo pelo caminho do meio.

Avatar 2 está aí para comprovar: o filme reforça um entendimento de mundo acima de tudo dicotômico, onde o engajamento para o conflito é o que define e separa as pessoas. Plenamente aceito como líder Na’vi, Jake Sully até tenta fugir da guerra quando ela oferece perigo para a sua família, mas sua trajetória de herói já está definida há muito tempo, ainda que O Caminho da Água leve três horas para mostrar para Jake que só na guerra ele poderá consumar seu papel de marido e pai.

Três horas talvez seja tempo demais para algo que, ao espectador, já parecia óbvio a priori. Avatar 2 tem os mesmos problemas dos filmes intermediários de trilogia: prepara terreno para uma conclusão e ao mesmo tempo abre novas searas de exposição que deixam dúvidas sem resposta. Essa indefinição pode jogar contra o filme, que não é tão conciso e objetivo quanto o primeiro Avatar. Cameron não parece muito preocupado com isso, porém. Sua narrativa se permite a indulgência de explorar o mar de Pandora em todos os detalhes; a mitologia desse universo scifi se revela e se expande acima de tudo no desenho de produção e na imersão do 3D de alta definição.

A essa altura parece redundante dizer que nenhum outro blockbuster americano hoje oferece uma experiência visual equivalente; isso vale tanto para os efeitos visuais de ponta, valorizados pelas variações entre a velocidade em 24 e 48 quadros por segundo, quanto para o cuidado dedicado à iluminação de cena e aos contrastes de cor. Basta o exemplo das famigeradas cenas de ação noturnas: num filme de super-heróis padrão, o anoitecer é sempre a oportunidade de baratear o CGI e esconder suas imperfeições; em Avatar 2, torna-se um recurso narrativo, uma vez que os eclipses constantes em Pandora fazem acender o “modo noturno” que dá à ação um caráter mais dramático e até mais intimista.

O velho e o novíssimo

A excelência técnica pode ser o principal motivo para levar as pessoas ao cinema, mas onde Avatar 2 realmente pulsa é nas dicotomias. Elas estão costuradas no próprio tecido desse universo ficcional, como pregar um ambientalismo meio new age e ao mesmo tempo abraçar o militarismo como uma filosofia de ação. Criativamente, Avatar 2 opera tensionado entre o velho e o novo, porque afinal existe um choque latente entre realizar um filme com o melhor que a tecnologia (e o tempo de renderização) oferece hoje, e fazê-lo como veículo para uma visão de mundo arquetípica “ultrapassada”.

Esse choque se expressa, acima de tudo, entre a forma e o texto. Na forma, temos essas criaturas anfíbias antropomorfizadas que são os Na’vi do mar, obviamente inspiradas na cultura muito real da Polinésia mas que desafiam nossas noções do que é reconhecível como humano. Se a nossa discussão para o futuro é entender e situar o transgênero, Avatar 2 então usa a fantasia e o scifi para se colocar na vanguarda dessa conversa (mesmo porque é um filme que não se furta a lidar com sexo e desejo). Já o texto não poderia ser mais oposto, com funções de gênero claramente distribuídas e a velha crença de Cameron na família como núcleo de organização social, com seus pais provedores e suas mães protetoras.

Nesses 13 anos desde o primeiro Avatar muita coisa mudou, não só em Hollywood mas também no mundo, e enxergar O Caminho da Água como uma resposta à nossa crise de alteridade ilumina o que o filme tem de melhor. Porque estimular o choque entre os opostos, ao invés de diplomaticamente tentar navegar no meio dos dois, é antes de tudo um reconhecimento da validade desses opostos. “Eu vejo você”, o grande lema Na’vi do primeiro filme, volta agora com mais força num contexto pós-pandêmico em que os laços sociais nunca estiveram tão apartados.

Em Avatar 2, claro, o choque dos opostos acontece com um espetáculo de violência ansiosamente aguardado, mas convém notar também que a alteridade se identifica e se negocia antes, ao longo do filme, com o contemplativo balé dos corpos na terra, na água e nos ares. O efeito dessa dança hipnótica de atração não pode ser menosprezado: está no movimento das caudas dos peixes, nas trocas de socos dos jovens, no toque do filho na barriga do pai. Das velhas concepções de mundo que o cinema americano abandonou na ausência de James Cameron, nenhuma é mais gritante que admitir a sensualidade inerente a todo gesto de aproximação.

Assim como o primeiro, Avatar 2 é um filme carregado de imagens de investigação sexual (Hollywood pode produzir quantos Pinóquios quiser e nenhum deles vai reinterpretar a história bíblica de Jonas com a carga erótica que Cameron atribui aqui ao tsaheylu de Lo’ak com a baleia). Antes de ser sexual, porém, o contato com o Outro é essencialmente sensual, está inscrito no próprio ato de ver e reconhecer o outro como um corpo autônomo e consciente. Ao tratar o movimento e o (re)encontro com sua devida importância como instrumentos civilizacionais, James Cameron traz o “velho” para o futuro. Ele dá, então, a todo o desbravamento de novas tecnologias e possibilidades visuais um verdadeiro propósito.

Nota do Crítico
Ótimo