O umbiguismo americano se apresenta nos filmes dos irmãos Joel e Ethan Coen de forma disseminada. Está na caricatura dos tipos machões, dos homens de negócios, dos caubóis, até na obsessão com que religiosos discutem a autoimportância dos seus textos sagrados. O ridículo de se achar no centro do mundo e no comando de suas ações sempre foi combustível para os Coen, condição demolida pelas reviravoltas típicas da comédia de erros, o gênero de preferência dos irmãos. Não é por acaso que Jeff Lebowski seja o grande anti-herói dos filmes dos Coen, o americano que recusa o papel de vencedor.
Ave, César! (Hail, Caesar!, 2016) está cheio de tipos vencedores. Trata do sequestro de um astro (George Clooney) que protagonizava para a Capitol Pictures de Eddie Mannix (Josh Brolin) um épico bíblico sobre o Calvário. Talvez este seja o filme dos Coen em que a sátira fica mais latente, na analogia muito clara entre o Império Romano, incapaz de enxergar na figura de Jesus Cristo uma ameaça ao seu status quo, e os Estados Unidos dos anos 1950, representado em sinédoque pela indústria hollywoodiana, que recria o mundo e a história dentro dos seus muros e sempre foi muito bem sucedida nessa fantasia de autossuficiência.
Mas existe a ameaça de fora. Embora já tenham traçado um paralelo entre Hollywood e a guerra em Barton Fink, a preocupação com o mundo pós-11 de Setembro, em que a religião mais uma vez se problematiza, tem se tornado uma questão para os Coen em filmes mais recentes. Ave, César! não tem nuvens tão negras no horizonte, como o final apocalíptico de Um Homem Sério, mas rapidamente fica evidente ao espectador que estamos diante de uma elegia - não só aos tempos mais inocentes dos westerns e dos musicais mas também ao imediato Pós-Guerra em que os EUA puderam se sentir de fato os heróis que definem o mundo.
O que diferencia, então, Ave, César! de outras sátiras agridoces que ressaltam a inocência da Velha Hollywood, de Cantando na Chuva a Uma Cilada para Roger Rabbit? Além da referência à guerra, na trama cômica do complô comunista, o viés religioso parece ser a resposta. Embora os Coen sempre tenham se portado como outsiders dentro da máquina hollywoodiana - o que sem dúvida permite que eles façam com mais liberdade seu humor judaico autodepreciativo - em Ave, César! eles se forçam a enxergar as coisas de outro ponto de vista, e ao mesmo tempo isso é a coisa mais interessante e a maior fragilidade do filme.
Esse ponto de vista, impregnado de boa vontade católica, é o do executivo vivido por Josh Brolin, um tipo que poderia muito bem estar estrelando aqui um dos clássicos de Frank Capra sobre as maiores qualidades humanas do american way. Se a figura dos produtores é sempre retratada nos filmes sobre Hollywood como a serpente, o esmagador de números que suga a alma dos artistas, Eddie Mannix é o oposto: cristão devotado, fiel à esposa, incapaz de ceder às tentações das coisas fáceis, o executivo da Capitol é a alma encarnada do sonho americano projetado por Hollywood.
Se Ave, César! parece ser uma comédia sem punch, como se tivesse sido toda rodada depois do horário de almoço, não é apenas porque os Coen estão transitando por esse território do otimismo capraesco, tão inóspito para os irmãos. Numa época em que gente como David Cronenberg, Paul Schrader e David Lynch faz filmes tão sombrios e radicais sobre Hollywood, como verdadeiros párias, o humor comportado de Ave, César! parece mesmo ser mais um capricho vintage. Ainda assim, não é um filme sem arestas, e são elas que dão a graça no final.