Nos seus melhores momentos, Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d'Adéle) intercala cenas de privacidade, na cama, na mesa, com demonstrações de coletividade, no colégio, numa parada gay, em festas, sempre com música étnica, na França tipicamente mestiçada dos filmes do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche. Essa passagem constante do individual para o coletivo é essencial, porque Azul é a Cor Mais Quente é um filme sobre o desafio de tatear o mundo e de encontrar-se e identificar-se no outro.
azul é a cor mais quente
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Kechiche ignora o desfecho da HQ de Julie Maroh em que o filme se baseia e se concentra nos primeiros anos da relação entre Adèle (Adèle Exarchopoulos), estudante descobrindo o sexo, e a pintora Emma (Léa Seydoux), poucos anos mais velha. Como o longa tem "Capítulos 1 e 2" no título em francês, talvez Kechiche planejasse no futuro filmar o resto da história das personagens - o que é improvável que aconteça, já que a problemática filmagem de cinco meses deixou suas marcas, acusações de abusos, e as duas atrizes publicamente disseram que nunca mais trabalham com Kechiche de novo.
Tretas à parte, Azul é a Cor Mais Quente não soa incompleto ou exploratório. O estilo cru de filmagem de Kechiche, que desnuda as pessoas sem pudor em situações vulgares - nos filmes dele, como O Segredo do Grão, sempre tem gente pega pela câmera comendo de boca aberta, em close-up -, serve para desmistificar o corpo.
Essa disposição é central em Azul é a Cor Mais Quente: só tirando do sexo lésbico toda a sua carga de vergonhas e medos e preconceitos (e Kechiche remove essa carga à custa de muita piada de duplo sentido envolvendo frutos do mar) é possível partir para o verdadeiro problema, que é a questão da alteridade. Como convidar outra pessoa para a sua vida pode ajudar você a se conhecer melhor?
O filme de Kechiche é muito político nesse sentido (como são todos os quatro anteriores, aliás), porque entende que achar-se no outro, mais do que combinar no sexo ou acreditar em fantasias de "almas gêmeas", é uma questão de harmonia social. Tentar dar uma ordem ao mundo é, no fundo, a grande aflição na vida de Adèle, e as cenas dela como professora no jardim da infância, alfabetizando crianças, dão conta desse esforço de organização, que obviamente leva a sucessões de frustrações. Nada se faz sozinho.
Talvez Adèle tenha se apaixonado por Emma porque, no primeiro encontro das duas no parque, ganhara da pintora um retrato seu, sem defeitos, uma representação ideal. Esse choque entre a representação e a realidade - todo o início da trama se dá numa relação de vida imitando a arte - ajuda a entender porque a protagonista parece tão insatisfeita com suas projeções para sua vida, sua carreira. Embora seja afetuoso como só filmes franceses conseguem ser, Azul é a Cor Mais Quente não se rende às ilusões do romantismo, e nisso reside sua atualidade.
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