Cena de Babygirl (Reprodução)

Filmes

Crítica

Babygirl aproveita o sexo para fazer um drama de relações fascinante

Se há um filme que prova que a sexualidade tem “função” no cinema, é este

09.01.2025, às 08H24.

Os personagens de Babygirl são obcecados por mandar uns aos outros sentar - e, veja bem, eu não estou nem tentando fazer uma piadinha de duplo sentido aqui. Durante as pouco menos de duas horas do filme de Halina Reijn (Morte. Morte. Morte.), perdi as contas de quantas vezes um ou outro ator tentou se levantar de um sofá ou de uma cadeira, só para ser impedido - sempre verbalmente, nunca fisicamente - por um de seus companheiros de cena. Dentro do roteiro assinado por Reijn, é interessante observar como o poder de impedir que os outros fujam de um confronto, ou talvez do desconforto de uma situação, muda de mãos o tempo todo, em uma troca que se estende muito além dos joguinhos sexuais entre Romy (Nicole Kidman) e Samuel (Harris Dickinson).

Na trama, a CEO Romy escapa das barreiras entediantes de seu casamento com o diretor de teatro Jacob (Antonio Banderas) ao começar um caso com o estagiário Samuel. Mas não se trata somente de uma história de adultério: no ousado Samuel, Romy encontra a possibilidade de realizar desejos e fetiches de dominação que nunca conseguiu confessar para o marido. A ideia é provocativa, claro, mostrando a mulher poderosa no trabalho que gosta de ser feita de cachorrinha (até literalmente) na cama, e Reijn brinca com o conceito de maneira esperta, principalmente ao enredar Esme (Sophie Wilde), assistente de Romy, na história. Dentro do feminismo contemporâneo da girl boss que precisa “ser exemplo para mulheres no mundo todo”, que espaço sobra para o fetiche como realidade psicológica, por mais politicamente incorreto que ele seja?

Babygirl não deixa esse questionamento intocado, especificamente em uma cena de diálogos afiadíssimos lá no terceiro ato, mas aqui Rejn não parece tão interessada em fazer uma sátira das lógicas de poder e representatividade contemporâneas. Ao invés disso, ela usa a sua premissa picante para construir um drama de relacionamentos surpreendentemente centrado, e genuinamente fascinado pelas dinâmicas que movem maridos e esposas, mães e filhos,  chefes e funcionários, colegas de trabalho e amantes a fugirem de confrontos por tanto tempo. O filme postula que, talvez perdidos na esperança de manter uma fachada de perfeição e tranquilidade, esses personagens não percebem que apoiar toda uma vida em subentendidos vacilantes pode dar brecha para fraturas indizíveis que, um dia, precisarão vir à tona.

Trabalhando ao lado do diretor de fotografia Jasper Wolf (seu parceiro em Morte. Morte. Morte.) e do designer de produção Stephen H. Carter (Succession), Reijn ainda propõe para o filme uma estética que subverte o chavão visual do thriller erótico. Penetrando nas superfícies polidas do privilégio, iluminadas sempre por uma luz amarela enganosamente calorosa, Babygirl abusa das tomadas panorâmicas em drone para dramatizar os fingimentos nos quais seus personagens estão presos - mas pega a câmera na mão, em takes longos e íntimos, para retratar os momentos em que essas ilusões se quebram. Não há nada de confortável ou reconfortante, muito menos violento, no sexo filmado por Reijn: há alívio, e brincadeira, e perigo, e a sensação de euforia e ansiedade que só pode ser alcançada ao se jogar no desconhecido.

No centro nervoso dessa história, o trio formado por Kidman, Dickinson e Banderas se mostra mais do que capaz de segurar a potência dramática requerida pela diretora. A protagonista, em mais uma de suas escolhas de personagem caracteristicamente ousadas, retorce a imagem datada da dondoca emocionalmente remota para construir uma Romy que vive constantemente (e nervosamente) no limbo entre impulsos reprimidos e liberados, tomando cuidado para expressar cada hesitação e cada estranhamento que ela tem consigo mesma durante sua descoberta sexual. Dickinson, enquanto isso, milagrosamente transforma em virtude sua função dramática de expressar um magnetismo sexual convincente, que mal deixa entrever a insegurança de um homem que usa e é usado com frequência, e que tem dúvidas como todos nós. E Banderas completa a trinca de ases de Babygirl com uma performance autêntica que transcende o arquétipo de marido dedicado e “corno manso” - ele também tem certo poder, e sabe disso, como fica claro no terceiro ato.

No fim das contas, está mesmo tudo no rala-e-rola. E é interessante perceber como o filme de Reijn se posiciona, intencionalmente ou não, como a resposta perfeita àquela fatia do público que questiona a “necessidade” da cena de sexo como dispositivo narrativo no cinema. Babygirl não é, de forma nenhuma, sobre sexo: é sobre pessoas e relações que se constróem e desconstróem através dele, sobre dinâmicas que começam na cama e se estendem para além dela, estejam os personagens tentando reproduzí-las ou antagonizá-las na parte de suas vidas que não se centra na sexualidade. O ponto é que o filme só acontece, que a história só existe, por causa do desejo - e isso não tira nada de sua qualidade dramática.

Nota do Crítico
Ótimo