Filmes

Crítica

John David Washington se transforma no exercício absurdo de Beckett

Suspense parte de situação hitchcockiana clássica para fazer um estudo físico sobre o trauma

13.08.2021, às 14H39.

Ainda que eventualmente negue essa associação pelo meio do caminho, todo filme que escolhe para si o nome “Beckett” já se dispõe logo de cara a lembrar de Samuel Beckett, o dramaturgo irlandês de Esperando Godot que transformou o absurdo no teatro em uma forma de expressão muito particular. Tão particular que dele vem um adjetivo, beckettiano, usado para definir situações em que pessoas se veem imobilizadas, em comunicação truncada, sem saída ou mesmo sem propósito, como comentário pessimista da condição humana. 

O filme Beckett parece fazer de forma intencional a ponte com o Beckett mais famoso porque é justamente uma situação absurda assim que se abate sobre o personagem-título vivido por John David Washington. Ele está viajando de férias pelo Norte da Grécia com sua mulher (Alicia Vikander), alheio à turbulência política que marcou o país na época da crise de 2008. Uma noite, ele dorme no volante, o carro capota na estrada e Beckett vai parar no hospital. Dizem que a esposa morreu, mas ele não pode ver o corpo - é o primeiro de muitos ruídos de comunicação que vão marcar esse drama transformado em suspense de perseguição.

Enquanto faz o jogo de espalhar pistas para o espectador, o filme do italiano Ferdinando Cito Filomarino parece calculado até demais: tudo é oferecido nos diálogos e nos elementos de cena de forma funcional, a sugerir algo, seja um “ACAB” (“todo policial é um bastardo”) riscado na parede da delegacia, seja a interação do casal, organizada para pintar Beckett ostensivamente nos dez primeiros minutos como um tipo passivo, inábil e sem imaginação. Para além da clássica situação hitchcockiana do “homem errado no lugar errado”, o que parece interessar a Filomarino é de fato sujeitar Washington a uma jornada sádica, eventualmente redentora.

Mas convém não esperar demais dessa possível redenção, como qualquer conhecedor de Samuel Beckett já pode supor. O filme começa a ficar mais interessante quando deixa de fazer a exposição funcional do mistério e parte de fato para um registro absurdista: Beckett está num destino turístico cheio de paisagens deslumbrantes, o céu mais azul do mundo, velhinhos no bar, adolescentes em trânsito, rodinhas de fumo, gatos e cachorros nas ruas, apicultores, jogadores de basquete, enfim, um lugar que em nada insinua ameaça, e ainda assim Beckett é engessado, alvejado, molhado, picado, amarrado, apunhalado. Não fica muito mais absurdo que isso.

Já vimos muito esse tipo de situação em thrillers cômicos de eurotrip como Na Mira do Chefe (2008), em que as falhas na tradução (aqui, todo mundo fala grego, menos Washington) imediatamente representam para os anglófilos, colocados diante de gente que não fala inglês, uma experiência absurda por si só. Filomarino recusa a sátira, porém, e seu referencial parece vir de outros lugares, como Profissão: Repórter (1975), o filme hitchcockiano de seu compatriota italiano Michelangelo Antonioni. Essa ponte com Antonioni é feita no gosto pela observação: ao mesmo tempo em que o absurdo sufoca tanto o protagonista quanto o espectador, a câmera nunca se esquece de capturar a maravilha do estrangeiro, do outro, do imprevisível, uma maravilha que quiçá compensará todos os perrengues.

Filomarino não tem uma longa carreira como diretor. Parceiro de Luca Guadagnino, ele foi diretor de segunda unidade em filmes do italiano mais célebre, como Me Chame pelo Seu Nome, e em troca Guadagnino é um dos produtores de Beckett. Essa inexperiência não impede Filomarino de fazer escolhas muito conscientes aqui, como a escalação do astro japonês Ryuichi Sakamoto para compor a trilha sonora. Mestre do minimalismo, Sakamoto traz temas simples que dão o tom sem engano: sopro e violino na primeira perseguição, para estabelecer o clima hitchcockiano, depois cordas, e mais tarde percussão e pratos para demarcar o clímax. No teatro de Samuel Beckett, o absurdo é quase sempre acompanhado do minimalismo, e vale o mesmo para o filme, com efeito.

Essas decisões criativas se juntam para potencializar a situação do turista acidental, numa brincadeira de gênero com o suspense que vez ou outra o texto torna quase metalinguístico (como quando Washington chora para o policial que “houve um engano, não sou o homem que vocês procuram”). A convergência de tudo isso não seria outra senão o corpo e a movimentação de John David Washington. Aqui ele não poderia estar mais longe do astro de Tenet, ágil, forte, elegante e com licença para matar - e essa quebra de expectativa absurda pode até alienar o espectador. Como assim um personagem principal, por mais inepto, não sabe se portar como um herói americano numa situação de pressão?

Beckett torna essa composição do anti-herói (o “anti” aqui é usado numa definição mais radical, o avesso do triunfalismo) uma questão de honra e até de obsessão mesmo. Tudo na expressão corporal de Washington e na forma como a câmera a captura é pensado em função da ideia de que Beckett - para além da sua vocação para ser coadjuvante na vida - está em pleno trauma vivido: sofre de ataques de pânico, anda corcunda, corre tropeçando (a câmera desacelera os cortes e alonga os planos para mostrar que ele corre como um homem sedentário e não um atleta hollywoodiano), só consegue socar pessoas porque tem o braço engessado, e, depois de acidentar o próprio carro, Beckett está sempre no banco do passageiro ou no de trás, nos carros dos outros.  

Para nós isso pode parecer ridículo, porque estamos habituados a nossos heróis sempre cheios de postura, porte e destreza. No caso de Beckett - um homem negro num país de brancos, além de tudo - até mesmo o salto de fé no ápice do seu recém-descoberto heroísmo pode ser entendido como um gesto de um impulso suicida. Quando o filme termina e descobrimos que Filomarino encontrou uma expressão muito autêntica de um trauma e de um sentimento de culpa, seu exercício narrativo se completa - porque além do absurdo e do minimalismo, o pacote beckettiano sempre exige também uma boa dose de existencialismo.

Nota do Crítico
Ótimo