Nicole Kidman como Lucille Ball em Being the Ricardos (Reprodução)

Filmes

Crítica

Sequência de erros enterra os temas interessantes de Being the Ricardos

Há um filme fascinante sobre a natureza da energia criativa aqui, mas Aaron Sorkin não consegue encontrá-lo

15.12.2021, às 16H16.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H47

No clímax de Being the Ricardos (sem grandes spoilers, prometo!), o roteirista Aaron Sorkin mostra como, na gravação de um dos capítulos da pioneira sitcom I Love Lucy, uma figura famosa da história americana “salvou o dia” ao convencer o público de que a estrela da série, Lucille Ball (Nicole Kidman), não era uma comunista. O contexto é o da paranoia vermelha nos EUA durante o início da Guerra Fria, e a tal figura histórica é um homem famosamente violento, autoritário, indiferente às barreiras da lei.

Ele é, de certa forma, o herói de Being the Ricardos - ou, ao menos, o deus ex machina que chega para liberar a tensão quase insuportável em que os personagens passam todo o filme. Mas, ei, esta é uma história real, e Sorkin está só contando o que aconteceu, certo? Bom... não. O clímax de Being the Ricardos é inteiramente fabricado pelo roteirista, não há nenhum registro de sua concretude histórica. Sorkin sai do seu caminho, literalmente, para colocar este homem em um pedestal que não é, e nunca foi, dele.

Pior ainda: esse momento climático cheira a fabricação, e contradiz o próprio cerne temático da história que o filme conta. Acompanhando uma semana de produção conturbada de I Love Lucy, na qual a estrela Lucille Ball é acusada de ter laços comunistas e ainda suspeita da infidelidade do marido e coastro Desi Arnaz (Javier Bardem), Being the Ricardos é essencialmente uma trama sobre orgulho, ego, e sobre como eles interagem com a energia criativa de um artista.

Em seus melhores momentos, o filme se dedica a destrinchar o processo de criar comédia, ao suor e à precisão paradoxalmente necessários para fazer com que a graça pareça natural diante do público e das câmeras. Sorkin presta atenção especial ao trabalho duro de Ball, retratada aqui como uma mulher de pouco carisma pessoal, mas uma ética de trabalho impiedosa e um senso de ritmo narrativo impecável. O roteirista, muito habilmente, entende que a comédia física de Ball nascia de uma inquietação mental, uma necessidade de excelência que ardia do âmago desta mulher, antes de transbordar em seu corpo.

Absorvendo essa proposta do roteiro, Nicole Kidman constrói a personagem de dentro para fora, brilhando especialmente nos momentos em que ela toma o controle no set da série para “consertar” a cena da vez. A atriz empresta intensidade e concentração quase obsessivas para o olhar de Ball nesses momentos, e encontra a linguagem corporal perfeita, no restante do filme, para expressar a incerteza que a assombrava enquanto mulher e enquanto artista. A Lucille de Kidman é uma aparição, um fenômeno da natureza - e ao mesmo tempo, muito palpavelmente, uma pessoa de verdade.

Pena que Being the Ricardos não dê o mesmo luxo para Desi Arnaz, por exemplo. Se a decisão de escalar Javier Bardem já era questionável em termos éticos, por ser um ator espanhol interpretando um personagem cubano, muito mais insultante é a caracterização e o uso de Arnaz no filme, construído por Sorkin como o estereótipo do latin lover, do homem latino de sangue quente incapaz de controlar seus impulsos, seu ego, sua veia autoritária. Bardem é um grande ator, mas o roteiro de Being the Ricardos o impede de fazer do seu Arnaz algo além de uma caricatura de mau gosto.

Adicione nessa receita diálogos sem ritmo e repetições narrativas constrangedoras, que claramente se acham muito mais inteligentes e significativas do que de fato são, e você tem muito provavelmente o roteiro menos inspirado de toda a carreira de Sorkin. A decisão de dirigir o próprio texto também não beneficia o norte-americano, resultando em encenações rígidas e autorreferências espertinhas (há uma cena de walk-and-talk no meio do longa que provavelmente vai te fazer revirar os olhos) que sufocam o filme vibrante que poderia ter nascido desta história.

Se tivesse toda essa energia, talvez fosse mais fácil perdoar Being the Ricardos por seu grande ato falho no clímax. Imprecisão histórica é um preço pequeno a pagar pelo brilhantismo de uma obra de arte, mas a realidade é que Being the Ricardos simplesmente não se justifica como obra de arte.

Nota do Crítico
Ruim