Filmes

Crítica

Bem-Vindo a Nova York | Crítica

Abel Ferrara filma a história de Dominique Strauss-Kahn como a tragédia do Éden

04.09.2014, às 17H02.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 15H24

Embora circulem há anos boatos a respeito de seu óbito, Deus está vivíssimo nos filmes do cineasta Abel Ferrara. Não aquele Deus de interpretações literais da Bíblia - Deus enquanto uma luminosa manifestação física, criador e vigia - e sim a entidade de onde o Catolicismo tira toda a sua força: Deus enquanto influência, sua palavra martelada na cabeça dos pecadores, o Deus que reside no filho criado-à-sua-semelhança e que transfere ao homem o peso moral de ser onipotente.

bem-vindo a nova york

bem-vindo a nova york

O francês Dominique Strauss-Kahn, sem dúvida, foi onipotente enquanto dirigiu o Fundo Monetário Internacional, e não é difícil entender por que o cineasta escolheria essa figura trágica - DSK caiu em desgraça depois de acusado de abusar sexualmente de uma camareira em Nova York em 2011 - como protagonista de mais um drama sobre livre-arbítrio e poder, mortalidade e culpa. Em Bem-Vindo a Nova York (Welcome to New York, 2014), Ferrara coloca DSK numa via-crúcis em que vida e morte se confundem com crime e castigo.

É feito de corredores de hotéis e esteiras de aeroportos o caminho de Monsieur Devereaux, a versão ficcional de DSK interpretada por Gérard Depardieu. Nesse trânsito constante, sua cruz parece menos um fardo visível e mais uma condição congênita, como a obesidade mórbida: a consciência de ser um homem capaz não apenas de decidir o destino de milhões de pessoas mas principalmente de fazer o seu próprio - o que naturalmente afasta Devereaux da influência de Deus, ao mesmo tempo em que reforça a figura de Deus no homem.

Depois de uma noite inteira de sexo grupal com prostitutas, que Ferrara encena com habitual despudor, Devereaux amanhece num hotel em NY diante de uma camareira desavisada, que ele então tenta violentar. Seu paraíso, onde até então o homem transitava com a liberdade que sua posição política e econômica oferecia, desmorona como um capricho, e Nova York e os EUA se tornam o terreno do castigo divino: "Aqui seguimos instruções", diz um dos policiais no caminho do pecador.

Essa ideia de que o homem carrega em si a onipotência de seu criador, e que ao fim e ao cabo terá que lidar com a responsabilidade desse poder, ganha na figura de Depardieu uma tradução fisionômica. É como uma força da natureza, uma força de direito, que o corpo colossal do ator se move em cena, sua nudez mal contida dentro do enquadramento nas cenas de sexo em close-up. Que o corpo do ator se torne um constrangimento a partir da prisão - a cena em que ele se despe para o policial resume o gênio de Depardieu - é a etapa fundamental do castigo.

"Eu gostaria de dizer que quando morrer vou entrar para o culto de Deus", lamenta Devereaux, como se soubesse, de antemão, do preço a ser pago pela onipotência. Ferrara faz um comentário muito preciso e duro sobre moral, de modo geral, sobre o mundo do dinheiro, especificamente, e constrói em parceria com Depardieu um filme em que a força e a fragilidade do homem diante das coisas ganham corpo plenamente.

Bem-Vindo a Nova York | Cinemas e horários

Nota do Crítico
Excelente!