Cena de Bird (Reprodução)

Filmes

Crítica

Bird faz apelo pela sinceridade em um cinema insincero

Andrea Arnold faz “filme de miséria” sem fingimento

19.05.2024, às 07H51.

No início do Festival de Cannes 2024, o filme francês Diamant Brut abriu a competição pela Palma de Ouro representando o cinema da miséria em sua encarnação mais moralmente duvidosa, olhando de cima para baixo para as classes menos favorecidas da Europa, esvaziando sua cultura e sua subjetividade pelo bem de… de quê mesmo, de um filme que vai ser aplaudido por elites e intelectuais em um evento bilionário? É um conceito envenenado, desagradável, da cultura cinematográfica, mas felizmente Andrea Arnold trouxe a Cannes o antídoto para este veneno, e ele atende pelo nome de Bird.

Acima de tudo, não há fingimento em Bird. Arnold abraça cacoetes do “cinema de arte” , como o fascínio por formatos analógicos e a estetização barroca da pobreza, com uma dedicação ao pessoal e ao particular que desarma. Se o diretor de fotografia Robbie Ryan (que também assina Tipos de Gentileza em Cannes este ano) escolhe incluir ruídos à la VHS em sua imagem, Arnold contrapõe essae pendor ao rústico e ao antigo com a inclusão de vídeos gravados no celular da protagonista Bailey (Nykiya Adams), fundando seu filme na multiplicidade de pontos de vista, e embaralhando formatos para fazer dele uma narrativa muito mais poderosa em termos de alteridade.

Na trama de Bird, a jovem Bailey entra em crise quando seu pai, Bug (Barry Keoghan), anuncia que vai casar com a nova namorada. Ao mesmo tempo, ela conhece o misterioso Bird (Franz Rogowski), um estrangeiro que está a procura da família perdida há anos. Uma terceira subtrama toca na violência doméstica e no vigilantismo, com o roteiro de Arnold trabalhando de forma bem segura para amarrar suas três linhas em uma exploração do conceito de comunidade e como ele se relaciona com a construção de uma identidade na adolescência.

A jornada de Bailey, enfim, não depende da violência e da sujeira do mundo ao seu redor - ela acontece apesar dele, nos respiros de tudo o que acontece por causa dele. E, igualmente importante: ela é quem ela é em função de quem a cerca, e não do quê a cerca. Na identificação inicialmente relutante da protagonista com o personagem Bird, por exemplo, há uma sugestão de fraternidade queer formativa, arrematada no terceiro ato do filme com uma aproximação da fantasia alegórica - que, aliás Arnold insere no universo bem realista do filme sem muitos floreios, consciente de que o público aceita um choque tonal quando ele tiver ressonância com o universo emocional que o longa constrói.

No fundo, talvez todos os triunfos de Bird tenham a ver com esse construir tão cuidadoso de subjetividades. Nos jovens atores que dirige para entregar performances carismáticas, mas pulsantemente internalizadas em suas emoções mais significativas; na dosagem criteriosa que faz da inclusão de Keoghan e Rogowski, ambos excelentes em suas próprias idiossincrasias, para que eles não distraiam o espectador da concretude plenamente possível daquela história; na escolha da música, que segue sua própria jornada dentro do filme, a caminho de uma abertura emocional, de um diálogo mais direto e relacionável com o público e entre os personagens… nas mãos de Arnold, tudo é calculado e tudo parece absolutamente natural.

E eu gosto de pensar que isso acontece por causa da sinceridade de cada escolha. Não é que o olhar de Bird não seja treinado, em termos de cinema, mas que o seu impulso é o de destrinchar e entender o outro, e também o de celebrá-lo como genuíno - não mais genuíno que o eu, que não é totalmente removido de nenhuma obra de arte, mas igual a ele de todas as formas que os humanos se relacionam entre si. Encontrar esse cinema de ternura tão viva em um lugar por vezes tão hostil a ele quanto Cannes, engolido como toda indústria pela busca insincera de uma aprovação “vendável”, é um grande alívio e um grande prazer.

Nota do Crítico
Excelente!