Cena de Bizarros Peixes das Fossas Abissais (Reprodução)

Filmes

Crítica

Bizarros Peixes celebra o caos urbano em conto de super-herói bem brasileiro

Este é um daqueles (cada vez mais raros) filmes que realmente surpreendem com suas viradas de tom

19.01.2024, às 11H07.

Um dos personagens principais de Bizarros Peixes das Fossas Abissais, animação brasileira do diretor Marão, é uma tartaruga que passa seus dias se certificando de que cada detalhe da loja onde mora esteja arrumado e alinhado de forma impecável. Embora tenha a voz de Rodrigo Santoro, a tartaruga pouco fala durante o filme - ao invés de elaborar em diálogo a obsessão doentia dela com a arrumação (a sinopse oficial a descreve como portadora de TOC, mas isso nunca é verbalizado no filme), Bizarros Peixes escolhe se comunicar através de repetições visuais sutis, pacientes, que aos poucos entrelaçam esse detalhe da vida interna da personagem com a intenção expressiva da trama em que ela está metida.

A pobre da tartaruga, por exemplo, sempre passa as patas nervosamente pela cabeça quando encontra algo fora do lugar. Seu andar, enquanto isso, é animado com muito mais resolução (até literalmente, no sentido de que os traços se tornam menos rabiscados e mais justos) quando ela está no rastro de alguma desarrumação, pronta para corrigi-la. São detalhes que enriquecem a experiência de ver essa personagem caindo de paraquedas em meio ao caos urbano, quando uma enchente a expulsa do conforto de sua casa no meio da noite e ela acorda no centro do Rio de Janeiro, onde certamente vai encontrar muitas coisas que precisam ser consertadas.

Bizarros Peixes, no fundo, é uma celebração desse caos urbano e suburbano que é criado por e compreende a humanidade contida nele. Marão e seus parceiros de animação (a equipe toda conta com três pessoas: o diretor, Rosaria e Fernando Miller) realizam o centro do Rio, os campos verdejantes de Araraquara e os castelos medievais da Sérvia com traços bem distintos entre si, mas guiados por um mesmo espírito anárquico que dita uma mistura indiscriminada de técnicas: cenas em traços simples preto e branco são seguidas de sequências inteiras com texturas coloridas complexas; personagens surgem e desaparecem nas sombras de forma elegante durante momentos de introspecção, mas logo depois se esticam em caricaturas cômicas de si mesmos. 

O resultado é um filme que, em menos de 1h20 de duração, contém multidões. É, por exemplo, uma história de super-heroína que se apoia no humor esdrúxulo e na localização cuidadosa de referências para transplantar os chavões narrativos desse subgênero a um contexto indiscutivelmente brasileiro. A nuvem amigável dublada por Guilherme Briggs é um Robin para o Batman da protagonista, uma jovem superpoderosa (Natália Lage) em busca de um mapa misterioso - mas, enquanto nosso Robin ganha contornos de cafajeste inofensivo de novela das sete, a nossa Batman distorce a realidade com seus poderes bizarros, alterando detalhes do cotidiano sempre que faz uma de suas transformações.

Bizarros Peixes mostra destreza como aventura, segurando na ponta dos dedos o ritmo alucinante da trama. Aproveitando-se da liberdade imaginativa da animação, o filme nos convence de que está pesadamente investido em um caminho narrativo só para logo em seguida, com pouquíssimo embaraço, partir para outro completamente diferente. E não é que linhas de trama sejam abandonadas pela metade, ou que personagens entrem e saiam de cena de forma inconsequente - muito pelo contrário, tudo o que está aqui tem uma razão para estar aqui, e Bizarros Peixes é ótimo no jogo de preparação e recompensa inerente a qualquer roteiro, mas o escopo da narrativa é expandido e retorcido o tempo todo, nos apresentando a novos cantos e consequências do mundo ficcional que o filme cria.

Este é também, no entanto, um balé gracioso de traços e movimentos que usa o desenho como forma de refletir sobre as distorções e prazeres subjetivos da memória, e que por vezes esvazia a tela de propósito para retratar o efeito desorientador da perda da memória. Um dos lances mais inesperados de Bizarros Peixes é seu desvio na direção de um drama familiar íntimo no último ato, ainda que mediado por um clímax de ação que faça jus à sua super-heroína e à expectativa do público pelo entretenimento do frenesi. E não só o espectador se vê devidamente envolvido com as emoções dos personagens, como passa a enxergar a abundância criativa do filme como ela é: uma ode a tudo o que nunca queremos esquecer.

Enfim, eis aqui um filme que responde a um dilema com o qual Hollywood tem brigado muito: como dar ao público algo que eles não esperam, e portanto evitar o desgate dos produtos padronizados, se o mesmo público torce o nariz para tudo aquilo que não é familiar? Brasileiríssimo, Bizarros Peixes diz que é só seguir o seu coração - leia-se: os caprichos da criatividade imediada dos artistas que trabalham nele - e você chega lá.

Nota do Crítico
Excelente!