Philip K. Dick perguntava se Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? para entender o que nos torna humanos em um mundo sem vida. Em 1982, Hampton Fancher e David Peoples adaptaram o livro de 1968 e responderam com a ambição de autonomia dos androides: em Blade Runner o desejo pela vida é o verdadeiro fator de humanidade em um mundo sintético. Passados 35 anos, Fancher retorna para continuar essa explicação, agora ao lado do roteirista Michael Green, mas em um tom muito mais otimista.
A começar pelas condições mais favoráveis em que Blade Runner 2049 chega aos cinemas. Ao contrário do filme de Ridley Scott, vindo de uma produção infernal, com cobranças do estúdio, mudanças de última hora (incluindo do seu final) e uma recepção fraca de público e crítica, o longa de Denis Villeneuve é fruto da compreensão dos esforços estéticos e narrativos de Scott. Longe de ter sete versões para a mesma história até chegar à “do diretor”, essa é a visão completa de Villeneuve, com liberdade para reverenciar o antigo e colocar a sua própria marca, sem restrições.
Falar muito sobre a trama de Blade Runner 2049 é estragar a experiência da narrativa. Basta que se saiba que a Tyrell Corporation, originalmente responsável pela criação dos androides, foi comprada por Niander Wallace (Jared Leto), que fez novos e melhorados seres sintéticos para assumir trabalhos humanos degradantes nas colônias espaciais ou no que restou da Terra. Não que revelações e reviravoltas sejam a essência da trama, mas essa continua a ser fundamentalmente uma história de detetive, seja do caso investigado por K (Ryan Gosling), seja na contínua indagação metafísica sobre humanos e replicantes.
É a percepção de K que inicialmente transforma e sincroniza esse novo universo com o velho. Logo, assistir ao primeiro filme (na versão do diretor) não é mandatório, mas certamente muda essa concepção no instante em que o nome de Deckard (Harrison Ford) é mencionado. Quem já conhece o Blade Runner original fica um passo à frente de K, o que não significa que não seja eventualmente surpreendido na própria investigação de como as histórias se conectam.
Com o roteiro de Fancher e Green, Villeneuve não esconde o seu respeito pelo trabalho de Scott (que assina como produtor-executivo) e pelo livro de K. Dick, mas todas as referências são colocadas de forma a instigar um novo público, não atrapalhá-lo. Trata-se de não apenas continuar, mas atualizar e assinar essa nova perspectiva. Assim, o diretor amarra pela fotografia de Roger Deakins o neo-noir cyberpunk do filme de 1982 com a grandiosidade estética que estabeleceu em A Chegada (Arrival, 2016).
A influência da revista Heavy Metal e dos traços de Mœbius e Enki Bilal permanecem na criação dos personagens, mas Villeneuve usa o avanço nos efeitos visuais para alternar os ambientes fechados da cidade com uma visão ampla dessa Terra desolada. Entretanto, sua busca não é por realismo. Cada cena é calculada em detalhes - posicionamento de câmera, personagens e objetos de cena - em uma tradução da relação entre real e artificial que segue a história.
É uma escolha que leva a excessos, com cenas que se estendem mais pela beleza do momento do que por sua importância factual, mas que faz parte da essência atmosférica de Blade Runner. Suas questões filosóficas precisam ser mais sentidas do que respondidas, o que sobrepõe a composição de cena complexa aos diálogos simples em atuações deliberadamente programadas. A ambientação evita a banalização das perguntas repetidas sobre o que é real ou humano, com a trilha sonora de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer, assim como fizera Vangelis, rompendo os limites da tela nessa climatização.
Blade Runner 2049 justifica sua existência como sequência tardia ao ampliar conceitos do filme de 1982 e outros estabelecidos por Philip K. Dick. Faz isso não para responder velhas perguntas ou simplesmente renovar uma franquia, mas para seguir com questionamentos pertinentes, cinematográficos e humanos. Essa continua a ser uma história de detetive e uma história sobre a existência.