Se o domínio econômico da China no mundo se traduzisse em hegemonia cultural, Andy Lau seria maior que Robert Downey Jr., como Blind Detective, o mais recente filme policial do diretor Johnnie To, demonstra em 130 minutos de ação coreografada, numa única pegada de fôlego.
blind detective
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O ator de Jogo da Vingança e Conflitos Internos interpreta o detetive cego do título, Johnston, que pede US$ 1 milhão para ajudar a sua maior fã, a policial Ho (Sammi Cheng), a investigar um crime não resolvido, o desaparecimento de uma menina, anos trás. Ho diz que tem bom físico e boa pontaria, então Johnston acaba se aproveitando da policial para resolver outros casos enquanto cuida do mistério da garota.
Diante da premissa, vem à mente o espadachim cego Zatoichi da cultura popular japonesa, mas a matriz das referências de To neste caso é mesmo o noir americano e seus detetives particulares - o que as expressões ditas em inglês, os valores em dólares e obviamente o nome do personagem de Lau já sugerem desde o começo. Não um noir na sua forma e nos seus clichês, mas um noir de memória afetiva, de evocação, dos mistérios da carne que aproximam homens e mulheres.
Um noir como Um Corpo que Cai, por exemplo, que Johnnie To referencia aqui na cena em que Johnston fica de boca aberta ao sentir o cheiro de uma mulher que ele persegue; ela passando desavisada às costas dele, como Kim Novak atravessando o caminho de James Stewart no filme de Hitchcock. É desse tipo de reminiscência que Blind Detective é feito (e como a cinefilia de To obviamente é filtrada pela sua vocação para o cinema de ação coreografado, Andy Lau está mesmo mais para o Robert Downey Jr. valdevilliano de Homem de Ferro do que para o detetive clássico impassível de Humphrey Bogart).
O gênio de Blind Detective é trazer essa estrutura de reminiscências para dentro da trama. Porque, veja só, estamos diante de um CSI sem perícia e de um whodunit sem falsos suspeitos - um longa policial que vive pelo prazer da perseguição, onde toda reconstituição de crime é acima de tudo uma obra de imaginação, de fantasias enquanto sinônimo de tara, como a trilha sonora cheia de acordeons "sensuais" de tango deixa pontuar. Se a trama se encaminha para uma comédia sexual, é porque o prazer da ação e o seu caráter sexual são indissociáveis.
Blind Detective, nesse sentido, é um filme muito similar a Holy Motors no seu gosto por construir uma realidade a partir de encenações fetichistas, e Andy Lau se entrega a esse bailado com a mesma disposição de Denis Lavant no filme francês, construindo um personagem icônico de cinema feito com pedaços de tantos outros - Zatoichi, Carlitos, James Bond. A fisicalidade é tudo, e não é por acaso que Andy Lau parece estar fazendo cara de orgasmo o tempo todo.
A imagem que fica - dentre muitas imagens de antologia que parecem se gerar espontaneamente ao longo deste filme, como se To as herdasse - é a do detetive com a pistola na mão direita e o crânio sobre a esquerda. Não é um crânio como o de Hamlet, metafórico, mas um crânio real, ao mesmo tempo imagem poética e testemunha da ação, prova cabal de que, no cinema, somos antes de tudo corpos no mundo.
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