"Pra que pudores ou escrúpulos se o homem só é solidário no câncer?". Dono de frases memoráveis, Nelson Rodrigues atribuiu ao amigo Otto Lara Resende a máxima que marca os dilemas de Bonitinha, mas ordinária. Na peça escrita em 1962, o humilde Edgar repete a sentença à exaustão para decidir entre o amor e o dinheiro fácil, entre a batalhadora Ritinha e a rica Maria Cecília, entre a moral cristã e a velada sem-vergonhice da classe média carioca.
bonitinha
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É a terceira vez que o texto é a adaptado ao cinema. A primeira foi em 1963, com direção de J.P. de Carvalho e produção de Jece Valadão; Braz Chediak assinou a segunda adaptação, em 1980, com Lucélia Santos no papel-título. Coube então ao eclético Moacyr Góes, diretor cuja filmografia vai de Xuxa a comédias românticas e filmes religiosos, atualizar a peça de Nelson Rodrigues. A trama segue a mesma, a índole do pobre Edgar (João Miguel) é testada pela proposta de dinheiro fácil. Ele só precisa casar com a filha do abusivo patrão, desgraçada por um "acidente", e estaria longe do destino miserável do pai, que morreu sozinho em um hospital público. Seu coração, porém, pertence a Ritinha (Leandra Leal).
A versão rodada em 2008, e que só agora chega aos cinemas, mostra falta de tato já nos primeiros minutos. Um baile funk carioca, reproduzido aqui com a verossimilhança de uma telenovela, culmina em uma pesada cena de estupro. A sequência pretende mostrar o drama de Maria Cecília (Letícia Colin), mas a forma como é editada - da montagem à trilha sonora - acaba por, já no início do filme, destruir o impacto do desfecho final. A mesma mão pesada segue por todo o longa, que tira a sutileza do texto de Rodrigues, transformando malandragem em canastrice. O próprio mantra da peça - "o homem só é solidário no câncer" - soa aleatório, sem criar a necessária conexão entre a frase de Otto Lara Resende e os dramas de Edgar.
As atuações de João Miguel, Gracindo Júnior (Dr. Werneck) e Leon Góes (Peixoto) chegam a sustentar o filme em alguns momentos, mas seus esforços são logo derrubados pelo desleixo da adaptação novelesca. Artificialidade que cabe à "bonitinha" de Letícia Colin, tão caricatural que seus trejeitos, frutos da suposta pureza inabalável da personagem, apenas a deixam com cara de boba (para não usar palavra mais ofensiva).
Nelson Rodrigues, um autointitulado"anjo pornográfico", era capaz de espiar pelas fechaduras os atos mais escusos da sociedade. Bonitinha, mas ordinária é mais uma dessas revelações, conduzida por personagens eloquentes e cheia de reviravoltas morais. Nada disso, porém, aparece na versão de Goés.