De certa forma, Boogeyman: Seu Medo é Real é um triunfo de forma sobre conteúdo, uma aula de como um grupo dedicado de artistas é capaz de elevar até o material mais banal - não catastroficamente equivocado, veja bem, mas simplesmente banal - e criar a partir dele uma experiência cinematográfica cativante. Pode-se argumentar, claro, que o intuito dos criadores de Boogeyman nunca foi transcender o chavão: o ponto aqui é remontar a mitologia do bicho-papão e traçar uma linha tênue entre ela e o trauma dos personagens, nada que O Babadook ou a minissérie The Outsider (não por acaso, também baseada em Stephen King) não tenham feito antes.
Como inclusive costuma ser o modus operandi do autor, Boogeyman escolhe dar materialidade ao seu monstro, libertando-o do campo da metáfora e partindo para um confronto frontal com o terror de sua presença física no meio da família fraturada que protagoniza a história. Crédito onde é devido: o roteiro assinado por Scott Beck, Bryan Woods (dupla de Um Lugar Silencioso) e Mark Heyman (Cisne Negro) sabe exatamente o quanto desenvolver os personagens humanos, o quanto calcar os conflitos de comunicação entre eles, para mantê-los no meio termo confortável entre sujeitos ficcionais da psicologia pop contemporânea e arquétipos centenários do filme de terror.
São eles: Will Harper (Chris Messina), um terapeuta recém-enviuvado, e suas duas filhas, a pequena Sawyer (Vivien Lyra Blair, a “mini-Leia” de Obi-Wan Kenobi) e a adolescente Sadie (Sophie Thatcher, de Yellowjackets). Em meio ao luto pela mulher, o Dr. Harper atende um paciente perturbado (David Dastmalchian, de O Esquadrão Suicida), que jura que a esposa e os filhos estão sendo perseguidos por um monstro. É claro que, a partir daí, a tal criatura resolve trocar de alvo e se alimentar do trauma (e falta de comunicação) dos nossos protagonistas.
No papel, o que se segue são setups de susto previsíveis - a porta que se abre ou fecha de repente, a criatura que se esconde nas sombras do cantinho do teto onde a luz fraca dos celulares e da TV não chegam, etc. - e uma reorganização de tendências contemporâneas do terror, especialmente na caracterização grosseira das personagens adolescentes e no retrato do trauma como um ciclo inescapável de alienação interpessoal. A diferença é que, em concordância com o estilo romântico amadurecido da fase mais recente de Stephen King, Boogeyman não é tão fatalista quanto Sorria e Hereditário, tão violento em suas “soluções” quanto Midsommar, ou mesmo tão amargamente irônico quanto Babadook.
Esta é uma história que dá muito mais crédito ao esforço genuíno de seus personagens para compreender uns aos outros e fazer as pazes com o mundo em que precisam viver juntos. Se você me perguntar, é um alívio: de trama de horror niilista, já basta o noticiário. Mas é claro que há quem vá condenar Boogeyman por “se render à pieguice de Hollywood”, “recusar-se a encarar o verdadeiro cerne sombrio de sua história”, ou qualquer pedantismo do tipo - tudo pelo crime capital de ter um coração.
É a partir desse patamar textual competente, mas inteiramente trivial, que o diretor Rob Savage trabalha para elevar Boogeyman a alturas insuspeitas dentro do cinema de horror. Mais conhecido pelo fenômeno pandêmico Host (aquele filme de terror visto inteiramente pela webcam dos personagens), Savage carrega para este primeiro projeto nos grandes estúdios de Hollywood uma inventividade aparentemente infindável. Se os setups dos sustos são previsíveis, o diretor sempre busca um truque estético ou introduz um elemento de cena que os torna especialmente eficazes.
Um exemplo fácil: percebendo que a luz é um elemento que permeia esta história a um nível de obsessão (o bicho-papão do filme sempre foge da claridade), Savage trata de preencher as cenas com lâmpadas, luminárias, velas e chamas de diferentes cores, formatos e padrões piscantes. O diretor de fotografia Eli Born (do recente reboot de Hellraiser), por sua vez, se delicia com os formatos sinistros dos rostos dos atores iluminados de diferentes ângulos - com pouco mais do que um abajur vermelho e um enquadramento debaixo para cima, Boogeyman é capaz de fazer até a bem-intencionada psiquiatra interpretada pela sempre branda LisaGay Hamilton parecer assustadora.
Já no brilhante trabalho de montagem assinado por Peter Gvozdas (Invocação do Mal 3), o filme encontra a forma de contornar o que poderia ser uma introdução física desajeitada do seu monstro principal. Revelando-o aos poucos - em uma cena os olhos brilhantes, em outra o formato esquálido da cabeça, em mais uma os pés pesados e a pele mucosa -, Boogeyman consegue tanto segurar o espectador em suspense, na ponta da cadeira, por mais tempo, quanto acostumá-lo à ideia de que um universo narrativo tão modestamente realista, até doméstico, possa comportar uma criatura tão… anormal.
Não é que os efeitos especiais sejam ruins, porque não são, mas o filme tem consciência da flutuação de chaves estéticas que existe embutida em seu texto, e toma as decisões certas para mitigá-la. Confortáveis nesse mundo milagrosamente coerente, os atores ganham espaço para construir nos momentos mais íntimos do roteiro uma dinâmica familiar que comove mesmo com a falta de especificidade dos diálogos e situações: Messina, sempre bom em estabelecer comunicação com o espectador, foi a escolha certa para interpretar um patriarca emocionalmente retraído pelo qual o filme ainda quer que torçamos; e Lyra Blair, como já havia demonstrado em Obi-Wan Kenobi, é uma daquelas atrizes mirins que encenam com uma pureza emocional que nenhum adulto é capaz de replicar.
Em suma, é difícil achar motivo para reclamar de Boogeyman. Honesto em suas ambições narrativas, mas ainda assim excepcional em seu trabalho estético, eis um filme de terror que não cede a nenhum dos dois impulsos essenciais do gênero na atualidade: interceder pelo apoio incondicional do público hipster, ou jogar no mínimo denominador comum do cinemão popular. O bom cinema de horror, parece argumentar o longa, só depende de si mesmo para funcionar.