É noite em Yokohama, no Japão. Meia da seleção brasileira de futebol, Kleberson avança pela ponta direita do gramado no Estádio Internacional e, aproveitando o espaço criado por uma movimentação agressiva do lateral direito e capitão, Cafú, toca a bola para o meio da área e na direção do craque cerebral do time e camisa 10, Rivaldo. Ele, por sua vez, não encosta na redonda, pois vê a aproximação do artilheiro Ronaldo, abrindo as pernas e permitindo que ela encontre o dono de um dos cortes de cabelo mais bizarros de todos os tempos. Após uma finalização precisa do camisa 9, que balança a rede no fundo gol, o celebrado goleiro alemão Oliver Kahn parece desolado: com dois tentos de vantagem em relação aos bávaros na reta final da partida decisiva, já é possível cravar que o Brasil conquistará o título da Copa do Mundo de Futebol de 2002.
O povo brasileiro não sabia, mas aquela seria a última vez, por pelo menos 20 anos, em que o chamado "país do futebol" celebraria o título de uma Copa do Mundo da FIFA. Os festejos seguidos à conquista foram intensos, marcados entre outras coisas pelas cambalhotas que o volante Vampeta deu na rampa do Palácio do Planalto, apenas meses antes da despedida de Fernando Henrique Cardoso da Presidência da República. Nas duas décadas que se seguiram, derrotas e decepções mancharam de forma ímpar a relação afetiva do povo brasileiro com sua seleção de futebol (culminando no fatídico 7x1 contra a mesma Alemanha, no Brasil, em 2014), ao mesmo tempo em que a nação foi de um de seus mais prósperos períodos para um de seus momentos mais conturbados, fraturados, divisivos e frágeis.
É por isso que reviver a trajetória dessa última grande conquista da esquadra canarinho no documentário Brasil 2002 - Os Bastidores do Penta ganha ares catárticos. Com depoimentos não só de muitos dos principais jogadores daquele time campeão (incluindo Ronaldo, Ronaldinho, Roberto Carlos, Juninho Paulista e Beletti, que foi responsável por capturar muitas das imagens inéditas de bastidores, organizadas em filme pelo diretor Luis Ara), o espectador é transportado para um momento no tempo onde o ser brasileiro parecia não só mais tangível, como também mais digno de celebração. Para isso, Ara entende a narrativa de superação como grande força motriz do esporte, e rastreia no fracasso do Brasil no mundial de 1998 a história de origem do time campeão, quatro anos depois.
Assim, Brasil 2002 começa recapitulando o tão desesperador quanto polêmico episódio do ataque epilético de Ronaldo, na véspera da decisão da última Copa dos anos 1990. Antes da partida disputada na França, contra a própria seleção francesa, o craque do time ficou à beira da morte após um episódio clínico aparentemente inexplicável. Ainda assim, foi a campo depois de ser submetido a exames inconclusivos, só para liderar um time apático, que viu o pentacampeonato adiado em uma trágica derrota por 3x0. Usando como ponte tanto a dificuldade da seleção brasileira em fixar um novo técnico a partir daí, quanto a luta de R9 para vencer uma grave lesão de joelho a tempo de outro mundial, o documentário destaca também o papel do imponderável na trajetória histórica do futebol.
Há certa pressa nessa passagem de tempo, e a distância do estadounidense-uruguaio Ara com o cenário maior do Brasil nos anos 2000 faz com que a síntese empregada na transição crie ruídos sobre os verdadeiros fatos que levaram o técnico Luiz Felipe Scolari ao banco da seleção brasileira, como técnico. Ainda assim, é possível rapidamente acessar a memória do emocional coletivo nacional em relação à amarelinha na convocação dos 23 jogadores que viajaram ao Japão e à Coreia do Sul para o mundial de 2002. Isso ganha forma especialmente graças aos depoimentos cheios de vida dados pelos próprios atletas que protagonizaram esses momentos. Quando mergulha em esmiuçar a trajetória brasileira na competição, aí sim o filme desacelera, permitindo uma riqueza de detalhes que evita tanto o exagero quanto a superficialidade.
As crônicas das difíceis vitórias sobre Bélgica e Inglaterra, por exemplo, têm tons épicos graças à busca de entrevistas com rivais como Marc Wilmots, David Beckham e Michael Owen. Ao mesmo tempo, Ara acerta ao não passar pano para erros de arbitragem que beneficiarem o Brasil, ainda que a qualidade da seleção demonstrada em campo os impeça de serem considerados chave para o título canarinho. O brilho maior, entretanto, está mesmo no ineditismo das imagens de bastidores captadas em câmera caseira. Imagens que, quando contrapostas com os jogadores, hoje aposentados e envelhecidos, miram com o agridoce da nostalgia o emocional do espectador. Mais do que destrinchar a tão falada "Família Scolari" — como o grupo campeão passou a se identificar e ser identificado pela imprensa — Brasil 2002 quer lembrar o brasileiro de como era gostoso sonhar.
E que, talvez, isso possa ser revivido ainda neste ano.