Em 2007, no auge de todos os problemas que levaram até a conservadoria de Britney Spears, ela lançou seu melhor trabalho, o álbum Blackout. No título, um sinal de que aquele era um momento em que ela não tinha mais luzes pessoais acesas. Em uma canções (a emblemática "Piece of Me") ela diz:“Sou a Srta. Extra! Extra! Últimas Notícias (Você quer um pedaço de mim?)”. Até hoje, mais de 10 anos depois, o mundo ainda acompanha a vida da cantora como num tabloide diário, preparados para arrancar um outro pedaço, sem a menor cerimônia.
Britney X Spears serviu-se do seu. O documentário que estreou na Netflix no último dia 28 foi divulgado como aquele que daria informações derradeiras sobre a tutela de Britney, refém das decisões do próprio pai desde então. Para isso, a diretora Erin Lee Carr se uniu à jornalista Jenny Eliscu e ambas começaram um trabalho de escrutínio em tudo que envolvia a vida de Britney desde aquele fatídico 2007 até os dias de hoje, quando já começou a ficar claro que a conservadoria a que ela foi submetida, se tornou um bom negócio para seu pai e para os advogados dele.
O movimento Free Britney não nasceu da imprensa, mas acabou se tornando uma ferramenta oportunista de veículos midiáticos de toda espécie. A vida da cantora, de fato, é cercada dessa dinâmica complementar tóxica: ela sofre o peso da exposição, mas a exposição também foi necessária não só para o próprio sucesso, mas também para fazer pressão pública e obrigar o caso a ser problematizado. A grande pergunta acabou se tornando: quem de verdade está pensando no bem de Britney?
Erin e Jenny aparecem cercadas de documentos “secretos” que teriam sido obtidos por uma fonte e que explicitam o que todos nós já sabíamos: por anos Britney foi considerada incapaz, mas, ao mesmo tempo, lançava álbuns e fazia turnês. Quando ficou claro para ela que estava sendo explorada e suprimida, ela renunciou ao trabalho, cancelou outra residência em Vegas e declarou que não trabalharia mais enquanto estivesse presa à tutela do pai. A obviedade presente nos tais documentos esvazia a obra de sua primeira função, o que vai piorando conforme percebemos que nenhuma das informações são checadas ou aprofundadas. E aí, vem a triste percepção: ainda tem muita gente querendo um pedaço de Britney.
Circus
As intenções de Erin e Jenny parecem zelosas, mas elas não se refletem no resultado final. De certa forma, mesmo que tenha sido difícil para Britney assistir Framing Britney Spears, do New York Times, ele usava de forma opressiva o pior do passado da cantora para mostrar como ela tinha sido torturada pela mídia através do anos, o que contribuiu muito para seu estado mental quando o ano de 2007 chegou. O documentário do New York Times era sensacionalista, mas ele tinha um ponto de vista. Britney X Spears não tem nada a dizer a não ser aquilo que todo mundo já sabe.
A obviedade não seria um problema se também não houvesse o desserviço. No intuito de retratar Jamie Spears como o maior vilão da vida da cantora, a diretora Erin Lee foi buscar figuras controversas do passado de Britney para dar a elas uma absurda chance de redenção. O paparazzi que se tornou seu namorado (Adnan Ghalib) e o “às vezes amigo” Sam Lutfi aparecem no documentário do New York Times como alguns dos “vampiros” que só queriam um pedaço da cantora, mas na obra de Erin soam como mártires da justiça.
O resto das entrevistas fracassa miseravelmente. De fato, a cada pessoa que se recusa a falar, cresce a sensação de que são essas as que realmente estão preocupadas com o bem estar de Britney. A narrativa que a diretora e a jornalista tentam construir é frouxa e aqueles que precisavam de um canal para se livrarem da posição de oportunistas, se aproveitam disso, usando o documentário como bóia de salvação. As tais “verdades” acabam não vindo, apesar de todo o esforço para sensibilizar a audiência com histórias que envolvem coisas como documentos sendo assinados em encontros secretos e privações financeiras. Britney vai de um lado para o outro, entre as pressões nos bastidores do X-Factor e a obrigação de lançar álbuns um atrás do outro. Mas, de fato, ninguém parece querer mesmo ajudá-la.
Não é surpreendente, então, que o clímax de Britney X Spears venha de algo que não tem absolutamente nada a ver com o trabalho de Erin e Jenny. Num áudio do depoimento que deu na última audiência de contestação da conservadoria, Britney fala de modo eloquente, sensato, seguro, sobre tudo que ela passou, sobre tudo que ela precisa conseguir superar e sobre ser a única a poder lutar por si mesma. O documentário da Netflix corre atrás do próprio rabo o tempo todo, mas tem um mérito: evidenciar que Britney não precisa dele. Ela está se recompondo e não pode deixar ninguém mais roubar-lhe outro pedaço. É hora de libertar Britney do “libertem Britney”.
Valerie Macon/AFP
Filmes
Crítica
Irresponsável, Britney X Spears reforça que cantora só pode contar consigo mesma
Trabalho da diretora Erin Lee Carr não acrescenta nada de novo e serve de vitrine para figuras controversas do passado de Britney.
29.09.2021, às 09H23.
Nota do Crítico
Ruim