Uma das cenas mais interessantes de Caminhos da Memória ocorre em um prédio abandonado - presumivelmente, uma antiga escola -, parcialmente submerso pelas águas de um oceano que invadiu a cidade de Miami por causa do aquecimento global. Nesse cenário, Nick Bannister (Hugh Jackman) e Cyrus Boothe (Cliff Curtis) travam um confronto brutal que culmina em uma sala de música abandonada às pressas, com instrumentos jogados por todo lado e um pesado piano prestes a fazer o chão arruinado pela água ceder.
A sequência de ação sublinha o senso visual único da diretora e roteirista Lisa Joy, que se estende por todo o filme, e a originalidade do mundo que ela criou. Caminhos da Memória é uma pedra rara em dois sentidos: é um dos poucos blockbusters da Hollywood atual sem conexão com uma franquia, e um dos ainda mais escassos filmes de ficção científica e fantasia direcionados explicitamente ao público adulto, que busca uma história madura e emocionalmente inteligente quando vai ao cinema.
Aqui, nosso protagonista Nick é um veterano de guerra que, na Miami distópica e afundada do futuro, sobrevive operando o que é conhecido como uma “máquina da reminiscência” - tecnologia que permite que indivíduos revisitem memórias, experimentando-as novamente como se estivessem lá. Quando a cantora de boate Mae (Rebecca Ferguson) busca os serviços de Nick, os dois acabam se apaixonando e vivendo um caso intenso… até que ela desaparece sem deixar vestígios, deixando o protagonista obcecado por encontrá-la.
A trama criada por Joy é cheia de cartas na manga para complicar essa premissa aparentemente simples, se utilizando com esperteza dos arquétipos do film noir (o gênero cinematográfico de thrillers criminais dos anos 1940 e 1950) para fixar a sua construção de mundo futurista em uma estrutura familiar para o público. Como roteirista, a co-criadora de Westworld também está sempre disposta a complicar, e não simplificar, seus personagens, o que significa que os criminosos e femme fatales de Caminhos da Memória nunca são exatamente o que parecem.
Ao invés disso, Joy costura com cuidado a moralidade de um mundo difícil, que reflete e amplifica as injustiças do nosso. Caminhos da Memória é, às vezes, uma potente fábula de desconforto social, apoiada pela construção visual simples, mas convincente, de um mundo futurista perfeitamente (e aterrorizantemente) possível - cortesia do brilhante trabalho do designer de produção Howard Cummings.
O filme ainda sobrepõe essa fábula a uma reflexão oportuna (e romântica) sobre a natureza da memória, sem fugir dos abismos e perigos que ela representa. Joy não tem medo de apresentar seus espectadores com a dualidade das escolhas de seus personagens: o trágico e amargo do “olhar para trás” e querer viver nesse passado perfeito (se fosse realmente possível, você resistiria?), por cima do triunfo agridoce de “olhar para frente” e buscar um futuro possível, ainda que falho.
Com performances intensas de Hugh Jackman, Thandiwe Newton (irrepreensível como Watts, parceira de Nick e a improvável força moral do filme) e Daniel Wu (inesquecível em suas poucas cenas como o trapaceiro Saint Joe), Caminhos da Memória tem algo original a dizer, e uma noção forte da melhor forma de dizê-lo. Parece pouco - mas, no cenário atual de Hollywood, é algo que merece ser valorizado.