Patrizia Reggiani nunca poderia ser uma Gucci de verdade. Se há uma tese central em Casa Gucci, um arco narrativo ao qual o roteiro de Becky Johnston e Roberto Bentivegna se mantém fiel durante as indulgentes 2h37 de filme, é esse - não importa o quanto ela tentasse, esta filha de uma família de classe média-alta com possíveis conexões mafiosas nunca se tornaria parte legítima da maior dinastia de moda de luxo da Europa, possivelmente do mundo. E isso não é por acaso.
A trama acompanha Patrizia (Lady Gaga) de seu encontro fortuito com Maurizio Gucci (Adam Driver) em uma festa até o momento em que foi condenada como mandante do assassinato dele, quase 30 anos depois. Neste meio tempo, os dois se casam e, conforme os outros membros da família Gucci morrem, são expostos por suas próprias falcatruas ou jogados para escanteio pela própria Patrizia, assumem uma posição de liderança na empresa - ou melhor, ele assume.
O script de Casa Gucci encontra um equilíbrio astuto entre objetivos inicialmente antagônicos: primeiro, expor a ambição inescrupulosa de Patrizia, especialmente conforme ela vai se enredando nas picuinhas dos Gucci e se transforma em uma mulher diferente da jovem que conhecemos no início do filme; depois, evitar a caricatura dela como uma mulher puramente interesseira e abrir espaço, assim, para analisar os sistemas nos quais ela se emaranhou, e pelos quais foi derrotada.
Na direção de Ridley Scott, esses sistemas são traduzidos em um excesso quase satírico ao caracterizar os Gucci e os ambientes em que eles circulam. Daí o clima camp que dominou os trailers e materiais promocionais do filme - as propriedades gigantescas da família, gravadas frequentemente em câmera lenta quase pornográfica por Scott; os marcadores de época que o longa usa (músicas, figurinos, penteados) para registrar a passagem de tempo entre os anos 70, 80 e 90; a maquiagem pesada de Jared Leto e Al Pacino, que se movem deselegantemente pela tela, travados pela inadequação fundamental a um mundo real onde o nível de riqueza de seus personagens não faz o menor sentido.
Isso sem falar no restante do elenco, todos exibindo sotaques italianos comicamente incongruentes entre si. Gaga e Driver, que estão no centro emocional do longa e precisam se segurar um pouco ao realismo, se equilibram bem em tela, especialmente nas cenas iniciais, que desenvolvem o romance dos dois de maneira extraordinariamente charmosa. Conforme o filme evolui pelos anos do namoro e casamento, parte dessa fagulha é perdida, ou não se traduz bem para a dinâmica amarga que surge aos poucos entre Patrizia e Maurizio. É só nos momentos finais, quando estão novamente separados, que os dois reencontram seus personagens mais plenamente, em níveis muito corporais e instintivos.
O filme dá mais espaço para os coadjuvantes alongarem seus músculos de caricatura, e o resultado é, obviamente, muito divertido. Se Leto e Pacino são o duo dinâmico mais marcante do longa, encarnando perdedores quase adoráveis em suas concepções tortas de mundo, Jeremy Irons é o lado sombrio dessa moeda. Mesmo com o seu limitado tempo de tela, o ator deixa marcado um Rodolfo Gucci severo e intimidador, mas também extravagante em seus trejeitos e decadente em sua cegueira em relação à própria obsolescência. É uma performance breve, mas que merece a atenção do Oscar.
Em outras palavras, Casa Gucci é entretenimento eficiente em um nível muito superficial, imediato. Testemunhar o estilo de vida dos ridiculamente endinheirados é um passatempo humano universal, e Scott é audacioso em como usa esse instinto para nos fisgar. Principalmente por ser um dos poucos cineastas com cacife o bastante para fazer esse tipo de drama épico na Hollywood hoje em dia, a escolha de referências e tom que ele faz aqui é um verdadeiro desafio à ditadura do “bom gosto” (o que quer que ele signifique para os árbitros culturais escolhidos da vez) do cinema de prestígio americano.
Melhor ainda é como o filme usa o investimento do espectador em sua sátira para fazer uma crítica afiada à aristocracia rigidamente hereditária que a Gucci representa, um sistema à beira do colapso, mas sustentado tropegamente pelas vigas capitalistas - e, acima de tudo, grotescamente cruel com quem compra o sonho de que é possível se içar ao topo dele movido à pura força de vontade. Casa Gucci, ainda bem, não precisa se levar a sério para falar sério.