O caso de reinvenção que Creed realizou nos últimos oito anos merece ser analisado, porque - ao contrário de franquias como Star Wars e Jurassic World, apoiadas essencialmente numa receita de legado - Creed soube entender que a essência de Rocky não está em eventuais fórmulas do filme de boxe e sim no poder da caracterização. Trocar a Philadelphia proletária dos ítalo-americanos pela Los Angeles da cultura negra e do showbiz não foi tanto uma ruptura quanto uma transição suave, pois justamente pautada por uma caracterização nova que fosse específica e autêntica.
Creed III (2023) é o primeiro longa da série que não conta com a presença de Sylvester Stallone na tela, Dolph Lundgren também não volta e o Apollo de Carl Weathers é mencionado a título de contexto. É com uma crença em uma nova mitologia já estabelecida, portanto, que Michael B. Jordan estreia como diretor e conta uma história de acerto de contas com o passado totalmente independente do que se viu em Rocky. É como se até os flashbacks da formação dessa mitologia já prescindissem do molde original ou da nostalgia.
O filme se mantém firme de pé com essa fé continuada na caracterização. Se o “núcleo rico” de onde veio Adonis (Jordan) já se sublinhava pela ostentação, agora as colinas de Hollywood ficam mais visíveis (o plano da vista da mansão, na cena no início com Adonis despertando, parece saída de BoJack Horseman), e o protagonista anda para todo lado com um copo do conhaque francês que paga parte do merchandising. A tipificação de Adonis como magnata do esporte apenas flerta com índices de caricatura; de todo modo, é importante caracterizá-lo como um privilegiado pois disso depende a tração do antagonismo com o “vilão” da vez, o ex-detento Dame interpretado por Jonathan Majors.
O boxe é um esporte marcado pela hegemonia dos negros americanos mas curiosamente poucos filmes lidam diretamente com essa realidade; na franquia Rocky, desde sempre consolidada em cima do orgulho branco, trata-se de um fato inédito. Do encontro eletrificado de Michael B. Jordan com Jonathan Majors depende toda a sustentação de Creed III, e o filme só funcionará se souber transformar em verdade de cena esse antagonismo. Os atores entendem bem seus perfis e o que os tipifica, então quando Adonis sorri ou Dame desvia os olhares, isso sublinha bem o fosso de privilégio e injustiça que separa os antigos amigos de infância.
Os melhores momentos dramáticos de Creed III ironicamente não acontecem dentro do ringue e sim nas trocas frente a frente que colocam essas caracterizações para se alimentarem mutuamente. Os filmes dessa trilogia continuam sendo muito bons em estimular pequenas respostas sensoriais do espectador porque muita coisa acontece discretamente em cena, seja quando acompanhamos Jordan ou Tessa Thompson comunicando-se em linguagem de sinais, seja quando a conversa de Adonis e Dame na lanchonete, cheia de palavras não-ditas, nos força a preencher sozinhos as lacunas do acerto de contas.
Como diretor, Jordan tem a luz de compreender a importância desses momentos, mas infelizmente o roteiro não lhe ajuda quando a trama precisa ser tocada adiante. A virada de Dame para Oponente Odioso acontece forçosamente no filme por uma necessidade de roteiro, e nessas horas as peças da caracterização, empilhadas com cuidado, já passam a balançar. Majors segura seu personagem no braço: Dame ganha estatura no filme mais pela presença cênica invejável do ator, sempre muito consciente corporalmente, do que pelo texto que lhe entregam. De qualquer forma, tudo isso se resolverá mesmo no ringue.
Já se falou bastante sobre a influência que os animes (dos quais Jordan é fã, a ponto de incluir no quarto do menino Adonis um pôster de Naruto) têm sobre as cenas de boxe de Creed III, e a tendência é que toda a sutileza da construção dramática termine eclipsada pela virtuose dessas cenas. A questão é que não deixa de ser uma ruptura (essa sim pouco suave): o filme se assenta todo numa noção palpável e familiar da realidade (a Los Angeles das colinas, da academia, da loja de conveniência) e daí o clímax transcorre numa realidade descolada, do estádio com o fundo em CGI e os golpes em câmera lenta de hiperrealismo.
Para além desse gosto de Jordan pelo shonen, é possível defender que encenar o boxe como um evento quase delirante, “sonhado”, se justifica como licença poética e também traz alguma novidade ao gênero já bem gasto do filme esportivo. No mais, já se vão quase 15 anos desde o lançamento revolucionário de Speed Racer (2008) e parece muito desanimador que Hollywood só saiba aproveitar bissextamente o potencial de artes plásticas e impressionismo que os fundos de computação gráfica podem oferecer narrativamente aos seus blockbusters. Por esse esforço de diretor estreante e de esteta, e apesar do roteiro limítrofe, Jordan já merece uma vitória por pontos.