A ideia de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, central para a perpetuação do neoliberalismo como modelo econômico, serve também de base para a maioria das narrativas cyberpunk e é nela que se apoia Crimes do Futuro. O novo filme de David Cronenberg, que marca a volta do diretor de Scanners (1981) à ficção científica distópica, apresenta um mundo arruinado em um futuro não muito distante, em que o hedonismo mercantilizado substitui as mediações da política.
Existe, sim, política em Crimes do Futuro, mas ela ressurge em cena de forma quase clandestina, na trama noir sobre um artista performático (Viggo Mortensen) que se torna pivô de uma intriga envolvendo as mudanças que o corpo humano está sofrendo num contexto pós-aquecimento global. Da política organizada como a conhecemos hoje restam apenas relíquias analógicas, como as burocracias kafkianas de um departamento de registros de órgãos humanos, ou então o classismo implícito nas escolhas étnicas do elenco (o policial é negro, os anarquistas são latinos, os ricos e os artistas são os brancos de sempre, com cara de gente rica e cansada).
De resto, o mundo de Crimes do Futuro é ditado pelo tédio e pela insensibilidade de um apocalipse estendido indefinidamente; Cronenberg inclui isso na própria premissa, ao estabelecer que o corpo humano evoluiu para uma condição em que não se sente mais dor, e o que resta do autoflagelo, esvaziado de religiosidade, são suas finalidades de fetiche. O diretor dá a si mesmo então a oportunidade de atualizar os seus filmes de tecnologia, sexo e aparatos bizarros, como Gêmeos - Mórbida Semelhança (1988) e ExistenZ (1999), mas agora numa chave mais minimalista e contida, mais afinada com o seu cinema no século 21, que renegou a explicitude que tradicionalmente se espera de um filme de body horror.
De explícito, Crimes do Futuro tem pouco mais do que nudez frontal e algumas entranhas. Na verdade o espectador que estiver esperando uma volta bombástica à velha forma vai encontrar um Cronenberg mais preocupado com iluminação e texturas; a luz baixa de inspiração barroca está a um tímido meio passo de imitar o formalismo radical dos filmes de Pedro Costa, apostando menos no que a luz revela e mais nos volumes das sombras. A noção de uma pós-civilização tomada pelas trevas é crucial para que o mundo de Crimes do Futuro nos passe credibilidade, todo feito de ferrugem portuária, prédios decrépitos e placas velhas com idiomas fora de lugar.
O fim da política está plenamente expresso nessa caracterização dos espaços. O mundo de Crimes do Futuro é um lugar melancólico esvaziado de gente; ninguém circula por espaços públicos fora dos cubículos da burocracia, dos contêiners dos anarquistas ou das arenas escuras onde acontecem as performances do protagonista. Se não há um sentido de epicentro social - o termo política vem do grego pólis, o lugar mais alto de uma localidade, onde os cidadãos se reuniam em convívio - o próprio conceito de política se metamorfoseia. O poder reside cada vez mais nas mãos daqueles que se escondem da luz, e aos demais restam os sintomas da sociedade do cansaço, num filme onde as pessoas passam a maior parte do tempo deitadas, sentadas ou agachadas.
Que Cronenberg consiga extrair um noir cyberpunk relativamente empolgante de toda essa formulação deprimente é um grande atestado da segurança e da firmeza de um cineasta na sua fase mais madura. A predileção tardia de Cronenberg pelos close-ups em grande angular com fundo desfocado - muito usados nos seus dois filmes anteriores, Cosmópolis (2012) e Mapas para as Estrelas (2014) - encontra aqui uma função mais condizente e torna a experiência do filme menos disruptiva do que nos outros dois longas citados, uma vez que os fundos nas sombras, a prioridade dada aos diálogos e aos iluminados semblantes de desconcerto contribuem para que o mistério policial e conspiratório deste noir ganhe vida nas frestas do minimalismo.
Costuma-se dizer que a ficção científica é o gênero por excelência que trata da vida mediada pela especulação tecnológica. Assim sendo, Crimes do Futuro chega em boa hora para devolver ao scifi sua expressão mais essencial, em meio a um modismo hollywoodiano que trabalha em favor da ficção científica mais fantasiosa. O resultado pode não ser o mais auspicioso mas está absolutamente em sintonia com o que a democracia e o capitalismo oferecem aos habitantes do planeta em 2022. Long live the new flesh.