A marca maior da série 007 é a frivolidade. É o desapego com que vilões há quarenta anos se diferenciam apenas pela forma como morrem. É a maneira como surgem os patrocinadores, em primeiro plano, na tela de um celular, no capô de um carro. Frivolidade é sabermos há mais de vinte filmes a maneira como James Bond pede seu martini, mas não sabermos qual o seu maior medo ou a sua maior ambição.
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O personagem se construiu em cima de trejeitos. Construiu-se no humor de Roger Moore, na rigidez de Timothy Dalton, no charme de Pierce Brosnan, na ironia de Sean Connery. Faz todo o sentido chamar 007 - Cassino Royale (Casino Royale, 2006), portanto, de uma reinvenção. O vigésimo-primeiro longa-metragem da franquia apresenta Daniel Craig no papel. Por que reinvenção? Porque 007 não suga características de Craig como fez com seus cinco antecessores. É o ator que se transforma no personagem.
Pode parecer estranho falar em transformação - sempre é papel do ator, afinal, incorporar seus personagens. Mas que Bond é esse que se oferecia a Craig, além de autor de meia-dúzia de frases prontas? O que definia o espião inglês eram os cenários paradisíacos, as tralhas tecnológicas, a megalomania de seus inimigos e a beleza de suas amantes. O que há de profundamente característico do personagem dentro dessa grossa casca de adornos?
Cassino Royale se dispõe a procurar essa essência e, no caminho, elimina uma porção de frivolidades - a partir de um roteiro que conta os primeiros dias do agente no MI-6, agência secreta britânica. Na trama, Bond é o sétimo espião promovido ao status de 00, licença para matar. E tem como missão derrotar, em campos de batalha que incluem uma mesa de pôquer, Le Chiffre (Mads Mikkelsen), o financiador de uma célula terrorista.
Ego demais
Logicamente, há muita ação no filme, do tipo vertiginosa, brigas a metros de altura, pega-pega em pista de avião, prédios desabando, etc. Não se esperava outra coisa do diretor Martin Campbell (007 contra Goldeneye). A surpresa é descobrir que ele sabe dirigir também as cenas de dramaturgia. E há pelo menos cinco delas que são definidoras.
São poucas cenas, mas que bastam para desenhar a psicologia do personagem e a relação que ele mantém com os demais, em especial com a sua parceira de missão, Vesper Lynd (Eva Green). A primeira é a morte do guerrilheiro africano interpretado por Isaach De Bankolé. A esta altura do filme, Bond já havia deixado um rastro de corpos para trás, mas este é seu primeiro assassinato, em auto-defesa, na frente de Vesper. A câmera acompanha não só ato, mas também o contraplano, o rosto dela diante da morte. A bela Bond-girl já havia trocado com o herói uma série de flertes, confidências até, mas só naquele momento ela compreende a essência do 00. Da mesma forma, percebe-se no olhar de Craig que matar, ainda que pareça, não é a coisa mais natural do mundo.
Quem já assistiu a Nem tudo é o que parece sabe a cara que Craig faz: rosto inchado, vermelho, olhar perdido, veias saltadas. É um semblante de desespero velado, como assistir ao próprio processo de corrompimento. A sequência seguinte, que mostra Bond lavando os sangues das mãos diante do espelho, deve entrar para a antologia da série. São alguns segundos em que passa pela cabeça de um homem toda a sua vida, todo o caminho que ele fez para chegar até ali e todo o vislumbre do futuro próximo. Profundidade assim (no que um filme de ação permite-se ser profundo) poucas vezes se viu nos vinte filmes anteriores.
Repete-se o tempo inteiro nos bons diálogos escritos por Paul Haggis (Crash - No Limite): o novato Bond tem ego demais e isso não é bom para a profissão. Ego não é sinônimo só de vaidade aqui, mas de personalidade e, principalmente, de falibilidade. E o que assistimos aos poucos em Cassino Royale é a supressão, na marra, do ego do herói.
James Bond já se permitiu ter ego, uma vez, em 1969. Em 007 a Serviço de Sua Majestade, um dos exemplares mais atípicos da série, ele se casou com Tracy Draco (Diana Rigg), filha de um gângster. A moça morre no final - e compreende-se, a partir daí, que 007 é um galinha por medo de sofer novamente. O processo de Cassino Royale não é muito diferente (isso se depreende do trailer em dois minutos). O que muda é a intensidade. A cena do salvamento pós-veneno tem um significado maior do que o simples clichê do desfibrilador, típico de situação médica. É um simbolismo emocional, de tocar o coração mesmo.
Há muita coisa no vigésimo-primeiro 007 que permanece inalterada em relação aos anteriores. As reviravoltas são inverossímeis como sempre. A intriga central continua sem fazer o menor sentido. Mas a questão aqui - isso parece frase escrita por Haggis - não é procurar respostas, mas fazer as perguntas certas. E a pergunta é: depois da sessão temos alguma noção de quem é Bond, podemos nos identificar minimamente com a sua situação, o seu drama? Sim. Agora sabemos, ao menos, o que levou o agente secreto a se tornar um bloco de frivolidade.