Em uma cena de 35 Doses de Rum (35 Rhums), alunos de uma faculdade de antropologia de Paris discutem as relações que países de Primeiro Mundo mantêm com os emergentes, ex-colônias e viciados em FMI em geral. Fala-se em tratar o assunto de forma racional. Um deles questiona o "sistema".
35 doses de rum
35 doses de rum
O filme imediatamente corta para uma cena no controle de tráfego de trens da cidade, com um plano-detalhe do mapa do metrô. A mensagem é sutil: dentro desse tal "sistema", que poucos entendem mas muitos querem derrubar, o fluxo se dá sobre trilhos. Há quem pense que é de via única, mas todo trem que vai uma hora volta.
O protagonista, Lionel (Alex Descas), é um condutor de RER, o trem que serve a periferia de Paris. Sua filha, Joséphine (Mati Diop), aluna de antropologia, funcionária de uma filial da Virgin, mora com ele em um prédio fora da capital. São seus vizinhos a taxista Gabrielle (Nicole Dogue) e o misterioso Noé (Grégoire Colin), que vive em viagem e é o único desse grupo de pessoas que não tem ascendência negra. Os quatro mantêm proximidade informal (mantinham já desde os créditos de abertura, com os nomes do elenco reunidos), e esse núcleo está para ser rompido.
O roteiro escrito por Jean-Pol Fargeau e pela diretora do filme, a cultuada parisiense Claire Denis, não menciona mais política, abertamente, depois daquela cena da faculdade. Mas é evidente que tensões sociopolíticas permeiam 35 Doses de Rum o tempo inteiro, a começar pela própria escolha de filmar uma história periférica que pouco tem a ver com a imagem turística que se faz da França. Música africana, panelas de arroz japonesas, sopas jamaicanas... Em Paris e arredores o cosmopolitismo não é um capricho, mas uma realidade.
E essa análise de afetos que é 35 Doses de Rum volta aos poucos a falar de dependência. Conhecemos outro condutor de trem, que está se aposentando e não consegue tocar a vida. Vemos rotinas sempre em trânsito por vias pré-determinadas (o táxi, os RERs) e carros que, quando não estão cobertos por lonas há eras indeterminadas, ousam sair do roteiro ritual e quebram no meio do caminho.
O fato é que é muito fácil criticar a forma como se hierarquizam relações (de pessoas, de países), mas fica difícil explicar por que essas relações e essas dependências se estabelecem. Medo de solidão? Comodidade? Seria presunção de 35 Doses de Rum dar todas as respostas, e Claire Denis não tem essa ambição. Aliás, seu cinema tocante e a sua narrativa segura funcionam muito bem independente dessa interpretação de simbolismos feita aqui.
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