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Um conselho de amigo: deixe o resto do dia - quem sabe, dois ou três - para não desperdiçar as emoções e sensações que A Criança (LEnfant, 2005) despertará em você: cinéfilo de verdade, ser humano comum, turista de passagem, ou qualquer um que tenha tido a bem-aventurança de passar por uma sala de cinema que esteja exibindo mais essa obra de arte engendrada por esses irmãos papa-prêmios dos grandes festivais mundo afora. É espetáculo para quem aprecia o bom cinema e, acima de tudo, obras que discutem as relações humanas, sobretudo as que envolvem os seres marginalizados pela degradação causada por um mundo extremamente competitivo - no pior sentido que o termo possa carregar.
Os Dardenne fazem um cinema que tem assinatura facilmente identificável, conseguem nos jogar no mundo dos questionamentos, da inquietude quanto ao nosso destino como seres humanos, usando uma repetição de estilo e até de temática. Quem teve a sorte de ver O Filho (2002) ou Rosetta (1999) - esse segundo mais raro aqui no Brasil - notará que desde o início de suas carreiras eles têm cutucado o mesmo vespeiro e, para isso, usado o mesmo material, as mesmas técnicas. E justamente pelo fato e coragem de, aparentemente, se repetirem, exercendo um estilo muito próprio e muito pouco usual, provam a cada petardo humanístico que lançam de vez em quando estarem alguns degraus acima da média no cinema atual; com alguns poucos cineastas dividindo tais patamares.
Na história, Sonia (Débora François), 18 anos, acaba de ter um filho.
Seu namorado, Bruno (Jérémie Renier), 20 anos, é mais um produto típico
dessa sociedade desigual denunciada sistematicamente pelos irmãos cineastas:
desempregado, sem perspectivas e que acaba se sustentando por pequenos trambiques,
furtos e golpes aplicados. Sem condições razoáveis de sustentar a si mesmo,
Bruno percebe que para continuar desfrutando do amor e da companhia de Sonia,
terá que adotar a postura de pai, fato que implicaria, entre outras coisas,
a necessidade urgente e constante de grana no bolso para poder dar sustento
ao novo rebento. Eles são imaturos - repare nas idades. A princípio, Bruno se
interessa muito mais por Sonia do que pelo filho e toma atitudes aparentemente
anormais no decorrer da história.
O filme, como todos os anteriores, se desenvolve no meio da pobreza do Primeiro
Mundo - Bélgica - e isso acaba por causar um impacto muito maior pela disparidade
chocante do contraste social, que num mundo rico toma ares de maior perversidade.
Estamos muito mais acostumados a ver os terceiro-mundistas como os miseráveis.
Inconscientemente aceitamos isso de modo mais natural. Ver um ser humano branco,
em seu próprio mundo, agindo como nós - pobres extremados e afastados das riquezas
- incomoda bastante. Pode parecer estranho mas é verdade. Esses dois geniais
diretores da branca e rica Bélgica têm consciência disso e fazem com que isso
se reflita em seu trabalho.
O estilo de filmagem e montagem dos irmãos - que usados por outros cineastas
passa a impressão de modismo - mostra razão funcional em seu trabalho. A câmera
respira, transpira, passa as emoções urgentes dos personagens, sempre muito
próxima e utilizada com destreza e perícia - sim pode se filmar bem com câmera
nervosa na mão. Eles chacoalham com suas câmeras mas não incomodam, pois usam-na
com razão de ser - aliás, nesse filme, até que estão comportados; afastaram-se
um pouco mais, fisicamente, de seus personagens. Mas, são exímios construtores
técnicos de seqüências também. Existe uma cena, por exemplo, na qual Bruno e
um moleque - mais uma das crianças do filme - montados numa moto e prestes a
cometer um pequeno roubo, são acompanhados e filmados com tal rigor e precisão,
mostrados de tal maneira, com uma câmera tão atenta e generosa nas respirações
e reações dos dois, que é possível sentir toda a tensão que eles passam durante
a ação. Perto do final, o foco - o eixo - se transfere, de maneira surpreendente,
e ratifica o filme como mais uma de obra de arte, fazendo com que ele crie um
vínculo, uma cumplicidade emotiva, com O Buraco, de Tsai Min Liang -
é um momento que fala de arrependimento, mas acena com a possibilidade de um
novo porvir. Genial, emotivo, imperdível.
P. S.: Os Dardenne decifram para nós os signos que ajudam a conduzir o ser imaturo - criança - para a graduação adulta. Eles não definem gratuitamente quem é a criança do título, pois seu trabalho consiste em mostrar o processo de transformação, de modificação, de conscientização. Não nos impõe isso como algo necessariamente obrigatório, não tecem juízo ou avaliações morais, mas demonstram que tal processo pode ser finalizado e concretizado por imposição bruta das circunstâncias. O mundo não é fácil sob a ótica dos diretores belgas, e mostrar isso na tela talvez tenha sido uma missão que se impuseram. Na realidade dá para sentir que eles acreditam muito mais no ser humano, no seu poder de reação, do que nas instituições e seus códigos de conduta. Acreditam muito mais nos atalhos arborizados que a mente - ou o instinto, que seja - procura em busca do caminho lúdico, do que nas estradas pavimentadas, rigorosas, retas e cáusticas construídas pelo instituído social. Fazem parte do seleto grupo de diretores humanistas que vagueiam mundo afora com seus filmes necessários.