"Essa vida é uma mistura de algo puramente fantástico, calidamente
ideal e, ao mesmo tempo, palidamente prosaico e comum, para não dizer vulgar
até o inverossímil"
Fiodor Dostoievski, Noites Brancas
amantes
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Leonard acaba de tentar suicídio de novo, sem sucesso. Na volta para casa, a câmera o acompanha atravessando, da direita para a esquerda, o corredor cheio de fotos de família do apartamento de seus pais. Fica claro já nesse começo de Amantes (Two Lovers, 2008) que Leonard, interpretado por Joaquin Phoenix, carrega nas costas o peso do mundo. Ou o peso da família, o que nos filmes de James Gray dá no mesmo.
Neto de imigrantes russos, o roteirista e cineasta até hoje narrou em seus três filmes anteriores - Fuga para Odessa (1994), Caminho Sem Volta (2000) e Os Donos da Noite (2007) - histórias de crime em Nova York ligadas a dilemas de geração, de filiação, dilemas de sangue. Amantes só não tem os crimes; é uma mudança do gênero policial para o melodrama que preserva não só os cenários mas os temas típicos (com algum teor autobiográfico) de Gray.
Leonard carrega nas costas, literalmente, o fardo de seguir os passos de todo primogênito - na hora em que tentou se matar, levava um dos cabides de roupa da tinturaria do pai, com a inscrição "Nós amamos nossos clientes". Há laços afetivos, mesmo esses mais protocolares, sufocando Leonard por todo lado. E o traje no cabide é a síntese da responsabilidade e da pompa que dele se espera. Quando aprendemos, ainda no começo do filme, o motivo que o levou a ser abandonado pela antiga noiva, esse sufoco aperta um pouco mais.
Eis que surge a vizinha. Michelle (Gwyneth Paltrow) mora em Brighton Beach, em Coney Island, não por escolha sua. É na escadaria do prédio que os dois se conhecem, mas Leonard e Michelle ficam próximos de verdade quando sobem para conversar no terraço, com Manhattan ao fundo, longe. Uma alegoria (que já está evidente no pôster) pontua Amantes do começo ao fim: Michelle representa a liberdade, o vento que bate em Brighton soprando para a cidade.
É evidente que Leonard vê nela uma fuga. Michelle seria a única forma de evitar uma vida de fotografias na parede.
Noites em Technicolor
Nos melodramas clássicos, como Tudo o que o Céu Permite (1955), de Douglas Sirk, sonhar com fugas desse tipo implica em uma fantasia atemporal, numa suspensão da realidade. Aqui, se não fossem as mensagens de texto que Leonard envia para Michelle pelo celular, ficaria difícil dizer se Amantes se passa nos anos 2000 - Leonard tem uma câmera fotográfica ultrapassada, seu pai usa na tinturaria máquinas velhas de lavagem a seco... O fato de Gray e seu diretor de fotografia Joaquín Baca-Asay emularem o Technicolor intensifica esse "regresso" a uma fantasia do passado.
Nesse ponto, o filme se parece ainda mais com a novela Noites Brancas, de Fiodor Dostoievski, cuja premissa casa com a de Amantes. Seja na São Petersburgo do século 19 ou na Nova York de hoje, as luzes da cidade permitem o devaneio. Quando, ao invés de pegar o metrô, Leonard vai de carro do bairro para o centro, parece que ele está presenciando, maravilhado, a noite de Nova York pela primeira vez. Já em Brighton, de casaco cinza, Leonard fica indissociável do cinza dos tijolos do pátio de seu prédio.
Curiosamente, como o tradutor Nivaldo dos Santos ressalta no posfácio de Noites Brancas (versão da Editora 34), o texto de 1848 de Dostoievski foi mal recebido por abraçar elementos da narrativa romântica, o que desagradou os críticos afeitos à escola do realismo. O melodrama de James Gray, da mesma forma, pode incomodar quem julga filmes como num desfile de escolas de samba, com uma nota de zero a dez para enredo, originalidade, alegoria... Desconfie se alguém disser que Amantes é previsível ou "tradicional", por exemplo. Ser original não é ser novidadeiro, e é preciso sempre entender a que o filme se propõe.
Aliás, Gray tem uma resposta pronta quando lhe apontam a previsibilidade. Falando sobre Os Donos da Noite, ele relembra que no início de Henrique IV o príncipe se vira para o público, com dois minutos de peça, e diz que está só aproveitando a vida, mas que no fim do último ato se tornará rei. James Gray não pode ser acusado de trabalhar com arquétipos (o filho pródigo, essencialmente) de forma classicista. Pode, no máximo, ser criticado pela imodéstia de se comparar a Shakespeare.
No fim das contas, Amantes é exemplar de uma tradição de dramaticidade. Você pode dizer que a imagem da luva - e sua metáfora da segurança familiar - é cafona, mas não dá pra lhe negar a força. Falas de Leonard, como aquela em que ele diz estar "muito feliz", aparentemente frívolas ou banais, são ditas por Phoenix com um pesar profundo. Aliás, parece o final de Os Donos da Noite, em que ele diz ao seu irmão que o ama. Ele não está mentindo, pelo contrário, há na família uma espécie de conforto, mas são expressões de uma sinceridade tremendamente resignada... Sinceridade de quem foi chamado de volta à realidade.
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