Antes que alguém questione, ou mesmo que exija, Olivier Assayas já coloca suas condições no começo de Carlos: a cinebiografia do terrorista venezuelano deve ser vista como um obra de ficção; há pontos na história de Carlos, o Chacal, que até hoje não são públicos e alguns coadjuvantes foram romanceados para fins dramáticos, diz o letreiro.
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Com isso, o coroteirista e diretor francês, célebre por seus dramas, como Irma Vep, Clean e Horas de Verão, de antemão evita as armadilhas e as obrigações das "histórias baseadas em fatos". Assayas está menos interessado nos atos do terrorista do que em entender o que acontece quando um ser político como Carlos deixa a persona engolir a ideologia.
Ainda assim, ao longo das cinco horas de Carlos - a versão integral exibida em Cannes, depois cortada em três partes para a televisão francesa, é a que veio ao Festival do Rio -, são os atos de Ilich Ramírez Sánchez que acompanhamos. A Assayas interessa o subtexto, sim, mas é preciso recontar momentos-chave da história do terrorista para que tenhamos a dimensão da sua transformação e para que o filme não se limite a simbolismos gratuitos.
O diretor não gasta tempo, por exemplo, explicando o apelido Chacal (que Carlos ganha por causa do livro de Frederick Forsyth, O Dia do Chacal) ou contextualizando demais a geopolítica ano a ano. Sabemos que os governos mudam por conta dos retratos de presidentes pelas paredes. O que é acessório na construção da imagem Assayas descarta ou põe em segundo plano.
A trama começa com o venezuelano Ilich, recém-formado em Moscou, discutindo com a sua mulher que a revolução de esquerda não virá por meios pacíficos. Ela o acusa de aderir à violência por questão de vaidade. Ele responde pela metade, a agressão fica no ar, e diz apenas que dali por diante passaria a se valer de um codinome, Carlos.
Nos anos 70, Carlos cometeu em nome da Frente Popular para a Libertação da Palestina os seus atentados mais arrojados, com apoio de aparelhos alemães, árabes, franceses. Um deles, quando explodiu um banco que a FPLP julgava sionista, é marcante no filme: Carlos arremessa a bomba, assume num telefone público a autoria, e a cena corta para o quarto dele, com Carlos nu diante do espelho, triunfante. Ali já se sente no mito a sua aura, literalmente. Assayas com frequência coloca o ator Édgar Ramírez numa posição à frente de janelas que permite que a luz banhe Carlos de forma quase divina.
Assumir autorias de atentados por telefone, esse processo tão curioso da liturgia do terrorismo, sintetiza bem o que Olivier Assayas propõe discutir com Carlos. Pelo ideal anti-imperialista estão unidos grupos os mais diversos, mas a glória anônima não convém a ninguém (a cena em que um grupo rival assume autoria por um atentado cometido pelo grupo de Carlos chega a ser cômica). Nesse sentido, é natural, quase um acordo faustiano, que Ilich deixe a propaganda de si mesmo lhe subir a cabeça.
Não espere das cinco horas de projeção grandes momentos catárticos (com exceção do complexo sequestro dos chefões da OPEP, o maior ataque de Carlos, que ocupa umas boas duas horas de filme), revanchistas ou mesmo um grand finale operístico. É com melancolia que Assayas narra a inevitável queda do terrorista. Não confundir melancolia com simpatia; o filme é bastante crítico sem precisar apelar para discursos prontos. Assim como sua câmera, sempre rápida e fluida procurando detalhes, Assayas não chega com ideias prontas. A verdade ele procura nas imagens diante de si.