É com o mesmo artifício de Alfred Hitchcock, seis décadas depois de Festim Diabólico, que Gustavo Hernández se dispõe a fazer um suspense num take só. Tudo parece ser um plano-sequência único, mas os momentos em que a câmera fecha em pontos escuros escondem cortes. Seria impossível, de qualquer forma, que A Casa (La Casa Muda, 2010) transcorresse em tempo real - um único plano de 78 minutos não começa no crepúsculo e termina num amanhecer.
a casa muda
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la casa muda
A trama começa no momento em que Laura (Florencia Colucci) chega com seu pai à casa do título, um isolado sobrado de fazenda no interior do Uruguai. Os dois foram contratados por um amigo do pai para reformar a casa. A ideia era dormir uma noite e começar o trabalho pela manhã, mas barulhos nos quartos de cima impedem Laura de dormir. Ela pede que o pai verifique - é a senha para o início do solitário pesadelo que a jovem enfrentará até o final.
Os recursos do diretor estreante são mínimos, e inicialmente contribuem com o suspense. Há iluminação baixa por toda a casa, que está com as janelas vedadas, e o único foco de luz expressivo é a lanterna que Laura carrega. A ideia é que o espectador dependa dos movimentos de Laura: só teremos acesso visual, naquele cenário de sombras, aos cantos que atraem o olhar dela. Mais adiante, isso provocará um curto-circuito em A Casa.
O curto se dá entre os dois tipos de perspectiva, a objetiva e a subjetiva. A objetiva é como um game em terceira pessoa ou um narrador onisciente - estamos olhando a ação de fora pra dentro, sem interferir. A perspectiva subjetiva, por sua vez, é em primeira pessoa - vemos o que o personagem vê. Hernández vai primeiro de subjetiva (quando Laura atravessa a cerca de arame farpado em direção à casa, a câmera simula o movimento do corpo dela) e troca as perspectivas ao longo do filme.
O problema dessa opção, numa tour de force formalista como A Casa, é que qualquer trapaça nesse jogo de olhares sacrificaria o filme todo. E quando a reviravolta enfim se estabelece, o diretor nos sacaneia. É difícil explicar sem entregar as surpresas... Em linhas gerais, descobrimos algo que invalida muito do que estávamos vendo antes. Se essa reviravolta se restringisse ao ponto de vista subjetivo, tudo bem - afinal, o olhar de Laura não é isento. Essa perspectiva não tem obrigações com a imagem. Mas a objetiva tem, e Hernández mistura tudo.
É o misterioso caso do filme que não existe, esse A Casa. Se não podemos confiar naquilo que a perspectiva objetiva nos mostra, o registro é nulo. Alguns diretores optam pelo plano-sequência por apego à imagem, para eles o corte é a morte de um instante. Hernández escolhe o plano-sequência pelo motivo oposto, por desprezo à imagem.