Prestes a completar 80 anos, Jean-Luc Godard está sendo homenageado pela Academia com o prêmio dado aos cineastas de quem já não se espera mais nada, o Oscar honorário. O que é uma injustiça, porque numa realidade utópica o filme mais recente do maior cineasta francês vivo, Film Socialisme (2010), levaria pelo menos o Oscar de melhor edição de som.
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Soa como um vórtice o vento que bate no microfone colocado no convés do cruzeiro, onde o filme inicialmente se passa. É como se o navio - que está fazendo um trajeto por Egito, Palestina, Odessa, Grécia, Nápoles e Barcelona - tragasse todos os resíduos do mundo. A comparação com Um Filme Falado de Manoel de Oliveira é inevitável; ambos usam um cruzeiro para discutir o eurocentrismo. A diferença é que o português se organiza a partir da diplomacia, com sua educada babel sentada no salão de mesas redondas, enquanto o francês recusa qualquer ordem que não seja a das colagens, do ruído.
Um cruzeiro é, ademais, o cenário perfeito, suspenso no tempo e no espaço, para Godard articular suas considerações sobre tudo, do capitalismo ("o dinheiro foi inventado para os homens não precisarem se olhar nos olhos") a Hollywood ("é irônico que o lugar fundado por judeus seja chamado de Meca do cinema") e até a pirataria de filmes ("quando a lei está errada, a justiça chega antes da lei").
Só não se engane com o discurso bronco do octogenário. Film Socialisme parece ser um dos trabalhos mais pessimistas de Godard, mas o que o esgotamento das imagens permite - sempre nessa linha da ordem pelo caos - é justamente o reencontro do sentidos. Ali, no limbo que é o cruzeiro, presenciamos a morte por ensurdecimento do que a modernidade nos deu de mais imediato (os "jantares do capitão" cheios de cores hipergranuladas das câmeras de celulares) e, ao mesmo tempo, o renascimento da linguagem (a régua com figuras como letras, o nome com "dois M e um N" que precisa ser soletrado).
Godard passeia pelo passado iconográfico europeu com uma velocidade que não permite às imagens se fixarem. É óbvio que colará uma cena de O Encouraçado Potemkin quando passar por Odessa; seria negligente, ou mesmo hipócrita, se não o fizesse. O fato é que para reencontrar significados é preciso perdê-los. Na única entrevista que deu durante o último Festival de Cannes (Godard faltou à coletiva e só falou à revista Les Inrockuptibles), quando perguntado o que achava de blogs e SMS, disse: "Por trás desse pensamento jovem similar a uma minhoca, uma coisa importa a todos esses apaixonados Fênixes: sobreviver e encontrar nas profundezas do caos a chance de ressuscitar".