Rodrigo Santoro é especialista em papel de doente, Ewan McGregor sempre interpreta bem tipos afetados e Jim Carrey tem predileção por personagens que subvertem a lógica das aparências. Estão os três, enfim, muito à vontade em O Golpista do Ano (I Love you Phillip Morris), mas a questão é entender o uso que o filme tenta fazer deles.
A controversa comédia dos roteiristas e diretores Glenn Ficarra e John Requa (roteiristas de Papai Noel às Avessas) se baseia na história real ("e é real mesmo", reafirmam os créditos iniciais) de Steven Russell, ex-oficial de polícia, pai de família, que ficou famoso por escapar da prisão no Texas quatro vezes. A especialidade de Russell era forjar identidades - de executivo de finanças, de médico, de advogado - tanto do lado de fora quando para fugir da cadeia.
Seria a típica história do homem que usa mil máscaras porque no fundo não tem rosto, mas o caso é que Steven Russell é gay - "gay, gay, gay", como Carrey diz em cena - e isso abre ao filme uma outra perspectiva. A simples opção por associar a amoralidade glamourizada dos filmes-de-ladrão à reafirmação da homossexualidade dá brecha para interpretações.
Uma possível, e que circula desde que o filme foi exibido no Festival de Cannes, é que teria tendência à homofobia - ou pelo menos a incentivaria. Dentro da prisão, Steven conhece Phillip Morris (McGregor) e faz de tudo para facilitar a vida do namorado, até pagar para que o detento vizinho que berra a noite toda seja espancado. O casal vive, na prática, em um regime de exceção, comendo camarão e chocolate - e o pesadelo de qualquer reacionário, aqui do lado de fora, é imaginar um mundo em que os gays tenham mais direitos do que ele.
Ao mesmo tempo, é possível enxergar a cadeia como o único lugar onde Steven e Phillip foram felizes de verdade. Ali todos são iguais - ainda que "nivelados por baixo", reduzidos a um número no uniforme branco - e não há a necessidade do teatro social que Steven interpreta do lado de fora, jogando golfe com chefes e fingindo ter uma noiva. O catálogo de disfarces do ladrão então ganha outra conotação - a falta de identidade de Steven seria uma contínua ameaça de sair do armário. E sair do armário de verdade, porque ser gay em Miami não conta.
São duas leituras possíveis de um filme que, talvez ciente dessa polarização, começa automaticamente a sabotar aqueles (como os críticos de cinema) que tentam achar em filmes uma unidade. Essa é a grande sacada de Requa e Ficarra, estreantes na direção: impedir uma interpretação ao sugerir várias.
Porque na verdade Steven faz o que faz não por ser gay, mas para suprir a falta de sua mãe. Adotado na infância, ele passou a vida inteira tentando provar aos outros que poderia ser amado e ter "a vida que merece", como diz. Repare que Steven revê a mãe adotiva em delírio, quando está na cama à beira da morte. Mas e se ele não estiver morrendo de fato? E se for outro golpe? Essa reminiscência do passado teria sido um engodo, e o artifício de Requa e Ficarra para nos despistar, desmascarado.
Se bem que Steven vivia no Texas, Estado conservador, e no fim do filme descobrimos que as fugas constantes do malandro eram um embaraço para o então governador, George W. Bush. Se Steven diz que o resto das pessoas são idiotas, ele se refere ao "fuckin' Texas", o que torna I Love you Phillip Morris não uma provocação, com direito a cenas quase explícitas de felação, mas um filme político.
Mas na verdade Steven age para se vingar da carolice da sua ex-esposa, que sempre disse que Jesus tinha um plano maior para ele. O céu aparece o tempo todo em I Love you Phillip Morris, até mesmo pintado no teto do tribunal (acompanhado nessa cena de música lírica), então o que o nosso herói faz, no fundo, é pintar um falo na cara de Deus.
Ou todas as alternativas anteriores.