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Crítica

Crítica: O Escritor Fantasma

Crônica sobre o poder começa bem mas faz a transição para o noir com tropeços

27.05.2010, às 17H22.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 14H02

O grande trunfo de A Rainha, ao nos colocar dentro da redoma do poder, é conseguir mostrar como essa redoma, cuja única janela é a televisão, se distancia de tudo o que acontece do lado de fora. Em O Escritor Fantasma há uma cena formidável que ecoa A Rainha: quando, de trás do janelão da casa da praia, só percebemos que está ventando porque o empregado oriental lá fora não consegue varrer o chão em paz.

escritor fantasma

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Diante dos problemas de Roman Polanski com a justiça, não é difícil interpretar O Escritor Fantasma como o retrato do isolamento acústico que é vida de uma celebridade sob os holofotes. Mas como celebridade e poder hoje se confundem, e o personagem de Pierce Brosnan no filme é evidentemente inspirado em Tony Blair, vamos deixar a interpretação criminal-confessional de lado e ficar com a política.

O Escritor Fantasma fica muito bem acompanhado, ademais, se colocado ao lado de A Rainha.

No filme de Polanski, a janela com o mundo que poderíamos chamar de real também se dá pela TV. Ewan McGregor faz o ghostwriter do título, encarregado de escrever a biografia do ex-Primeiro-Ministro inglês Adam Lang (Brosnan) depois que o escritor anterior misteriosamente morre. O substituto mal consegue trabalhar - chega na casa de praia localizada nos EUA, faz duas entrevistas com o político, e o exilado Lang precisa sair para se defender em Washington de acusações de crime de guerra. Da praia, o ghostwriter acompanha o que consegue pela televisão.

Toda a primeira metade do filme, que acompanha o processo de ambientação do escritor, é narrada de forma brilhante. A interpretação contida de McGregor, como se o personagem estivesse em dormência constante, faz de sua chegada à casa de praia uma travessia neblinada entre realidades paralelas: ele deixa a correria de Londres e, depois de um salto temporal marcado no relógio de um carro, chega ao silêncio da casa austera dos janelões de vidro que bloqueiam o vento.

É como se O Escritor Fantasma flertasse com o gênero dos terrores de mansão mal-assombrada, então faz sentido que aos poucos a crônica sobre o isolamento do poder dê mais lugar a uma trama de mistério.

Faz sentido mas não favorece o filme de todo. O roteiro adaptado pelo romancista Robert Harris (a partir de seu próprio livro, The Ghost) trata o personagem de McGregor como um típico herói de noir - vítima das circunstâncias, encurralado entre conspirações de morte e tentações do sexo - mas desrespeita a primeira regra do gênero: a desconfiança. Ainda que McGregor se esmere emulando o Philip Marlowe de Dick Powell, fica muito difícil se identificar com um "detetive" que conta seus segredos a absolutamente todo mundo que encontra pela frente.

E aí, nessa pescaria de versões de um mesmo crime, resta ao espectador esperar sentado que umas delas se revele a verdadeira. O escritor era o lastro da nossa inadequação naquele ambiente incomodamente confortável, e quando passa a sentir conforto de verdade para contar tudo o que sabe, nossa relação com ele se desmancha. O ghostwriter para de temer por sua vida, enfim, o que só deixa o desfecho de O Escritor Fantasma ainda mais despropositado.

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Nota do Crítico
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