O Solista começa de madrugada. O jornalista Steve Lopez (Robert Downey Jr.) sai de casa para andar de bicicleta, ao mesmo tempo em que a picape de distribuição de jornais começa a circular por Los Angeles. Os cortes cruzados dão a impressão de que a picape vai acabar atropelando o ciclista, mas isso não acontece.
o solista
o solista
O personagem que dá nome ao filme - e cuja história real, contada por Lopez em sua coluna no jornal Los Angeles Times, serve de base a O Solista - surge dias depois, tocando violino aos pés de uma estátua de Ludwig van Beethoven. Nathaniel Anthony Ayers Jr. (Jamie Foxx) mora na rua, mas já foi aluno da prestigiada escola de arte Julliard. Quem descobre isso é Lopez, e logo toda a cidade descobre Nathaniel também.
Acompanhamos flashbacks com o passado do músico mais por uma questão de protocolo - é o lado clínico de O Solista aflorando, para nos mostrar com ciência e em detalhes como sofre uma pessoa com esquizofrenia, como é o caso de Nathaniel. Mas o que interessa de verdade ao filme é Steve Lopez. O solista de fato é ele, o jornalista, dedilhando o seu "dom em extinção" para uma platéia desatenta, o povo de Los Angeles.
Repare, antes de mais nada, como o diretor Joe Wright (Desejo e Reparação) emparelha a genialidade de Nathaniel ao ofício de Lopez. São dois solitários - um trocou a família pelas ruas, outro chega em casa e não há mensagens na secretária eletrônica. São dois obcecados - um trabalha sozinho no jornal até altas horas, o outro toca o próprio braço como se fosse um violoncelo - e essa obsessão os impede de executar qualquer outra coisa. Nathaniel toca as sinfonias de Beethoven de cabeça mas não consegue terminar sentenças. Lopez escreve muito bem, mas mal consegue acertar o potinho para o teste de urina.
Acima de tudo, Lopez e Nathaniel são solistas porque parecem ser os últimos de suas espécies. Outro instrumentista que aparece no filme coloca a sua religião acima da música, e Nathaniel vê na música um meio e um fim. Já Lopez resiste em meio a uma imprensa em mutação, inconformado que Lindsay Lohan ainda seja notícia, assistindo às demissões em massa de seus amigos de LA Times.
É de um proselitismo atroz essa primeira metade de O Solista, com a mão pesada de Wright tratando jornalismo como arte para poucos e a cidade como uma orquestra, fazendo pombas voar sobre as vias sinfônicas de Los Angeles, conclamando todos a olhar para o "Katrina de cada dia", os miseráveis que dormem na rua mas têm, cada um, a sua bandeira dos EUA - como o diretor nos mostra com planos grandiloquentes de grua.
O paternalismo que segue até o fim do filme, pontuado pelo overacting dos protagonistas, pode convencer muito espectador de coração bom, mas não se engane com a aparente benevolência: o drama de Nathaniel só existe, no fim das contas, para elevar o drama "maior" de Lopez. Porque o jornalista foi, sim, metaforicamente, atropelado pela picape dos jornaleiros, e filmes como O Solista tentam estender a mão a esse tipo em crise existencial, carente de socorro ou pelo menos de atenção.
Leia mais críticas da Mostra 2009