Nascidos no mesmo ano de 1976, os belgas Hélène Cattet e Bruno Forzani dividem também o apreço pelos gialli, o gênero de terror italiano que tem entre seus mestres Dario Argento, Mario Bava e Lucio Fulci. A ideia de que o desejo é indissociável da dor, base do gênero, está presente em vários curtas do casal de diretores, como Catharsis (2000), Chambre Jaune (2002) e Le Fin de Notre Amour (2004).
E é assim também no primeiro longa deles, Sofrido (Amer, 2009).
Acompanhamos três instantes da vida de Ana que definiram sua personalidade. Na infância, em um casarão que hoje remete aos terrores espanhóis produzidos por Guillermo Del Toro, ela conhece morte (o funeral da avó) e nascimento (pega os pais transando). Na adolescência, em uma vila mediterrânea, mais revelações: sua mãe também olha os homens e se deixa olhar com malícia. No terceiro momento, já adulta, Ana retorna para a casa onde tudo começou - e a mutilação, expressão maior do desejo nos gialli, se consuma.
Cattet e Forzani reduzem os diálogos ao estritamente necessário - ou seja, quase nenhum - e sintetizam a vida de Ana em imagens-chave: o relógio da avó na infância (o tempo que urge), o cabelo na boca na adolescência (a consciência da sexualidade), o vento constante no fim da vida (o perigo de ser levada por desejos represados).
Cinema de simbolismos por excelência, o giallo frequentemente prescinde de narrativa clássica. Em Sofrido, um filme acima de tudo psicanalítico, são as memórias - ou melhor, as memórias em forma de sonho - que contam a história.
E aí os belgas se saem muito bem com sacadas de montagem e fotografia. A taquicardia com que Ana entra em contato com elementos do mundo dos adultos é reproduzida com cortes mais rápidos na infância, por exemplo. Essa alteração de velocidade fica bem clara no segundo segmento, da adolescência. Passagens que definem o fim da inocência da menina, como a do carro que passa ao lado da mãe, têm planos mais longos, para dilatar a ação.
Falando assim, parece que Sofrido é só um grande exercício de estilo, e nem seria diferente. O exibicionismo formal é parte da proposta dos diretores, como que exacerbando a própria imagem que Cattet e Forzani fazem dos gialli clássicos. Aliás, a vocação do filme para a cinefilia não fica mais clara do que na cena da navalha no olho, que remete a O Cão Andaluz. Sofrido vai até a mãe de todo horror surrealista, o curta de Luis Buñuel, para prestar essa homenagem como se deve.
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